Mês que vem, as manifestações disruptivas de 2013 completam dez anos. Parte considerável da esquerda gosta de pensar nas famosas ''jornadas de junho" como uma grande conspiração da direita para atacar o paraíso que estava sendo construído no país nos mandatos do PT, uma narrativa que é ridícula e que desmonta quando se presta atenção à espontaneidade dos protestos massivos que engoliram as principais metrópoles naqueles dias.
Os manifestantes saíram de casa para reclamar, inicialmente, do custo abusivo dos serviços públicos. Pediam que o governo se preocupasse com as áreas mais sensíveis ao espírito verdadeiramente republicano: investimentos em saúde, educação, segurança, transporte urbano etc. Uma das causas óbvias da tomada das ruas pelas classes populares era a intensa ''inflação de serviços'' que tomava conta do Brasil em meio ao crescimento econômico (e sem base produtiva real) dos mandatos de Lula e Dilma.
Os protestos não tinham base político-partidária. Sindicatos, corporações, partidos que tentavam se imiscuir e se fazer de representantes ou líderes dos manifestantes eram severamente vaiados. Havia a mesma hostilidade em relação à mídia. Jornalistas da Globo eram sistematicamente expulsos das passeatas. Lembro que, durante um protestos de meio milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro, até helicópteros de emissoras de TV eram vaiados.
O tamanho dos protestos eram tão desconcertantes, sua falta de liderança tão patente, suas pautas tão difusas, que boa parte do sistema político sentiu o golpe. O Congresso fazia sessões noturnas pra provar que estava trabalhando, a mídia tentou conter a violência contra fachadas de bancos e prédios públicos, a polícia reclamava dos plantões sucessivos, a Alerj do Rio foi invadida e saqueada.
Em meio ao caos, o governo Dilma ficou imobilizado. Não sabia como lidar com o problema. Aqueles protestos não tinham explicação segundo a narrativa petista de que o país estava uma maravilha, de que a desigualdade social era combatida, de que havia uma nova classe média, de que o Brasil estava "bombando" na arena internacional e na econômica.
A incapacidade do governo em tirar partido dos atos fez com que, na disputa de agendas a médio e longo prazo, ele caísse na mão da direita liberal e conservadora. Em um prazo de dois anos, quem tirou proveito de toda a confusão foi uma nova direita americanófila (calcada firmemente no conceito de patrimonialismo de Faoro) que visava colocar abaixo o sistema político-partidário e o Estado brasileiro.
Foi essa onda que envolveu a 'República de Curitiba' [uma aliança entre a grande mídia e parte do Poder Judiciário, com pontes com agências estrangeiras]. Com ela, veio: o transbordamento da influência de Olavo de Carvalho em setores da alta classe média; a militância de uma burguesia industrial parasitária que, para sobreviver desejava jogar a conta pra cima dos trabalhadores; na disputa por corporações de Estado que se tornaram o refúgio da classe média lacerdista [oficiais das FAs, alto escalão do Poder Judiciário etc.]... Foi dessa onda que emergiu o bolsonarismo.
E o país ficou, então, a mercê dele porque a maioria esmagadora dos atores que podiam oferecer um contraponto estavam sequestrados e hipnotizados pelo lulopetismo, que era a 'situação'.
Depois de 2016, a população ficou esgotada de tantas manifestações, protestos etc. Houve uma certa acomodação. De todo modo, quem consegue colocar gente na rua ainda hoje é a direita capturada pelo bolsonarismo. A esquerda passou a temer cada vez mais as manifestações populares porque perdeu a narrativa: já não é mais a força com maior potencial de mobilização política no Brasil. Hoje, ela pertence a intervencionistas, evangélicos etc - a base social do bolsonarismo.
Se amanhã ou depois, os protestos de rua levantarem de novo as massas, a aliança que agora posa de garantidora da Nova República será mais uma vez o principal alvo. A esquerda que sofre de Síndrome de Estocolmo em relação ao lulopetismo perderá o bonde de novo - porque não aprendeu nada e porque não soube ler corretamente 2013.
As jornadas de junho daquele ano não precisavam abalar a Nova República em prol de um choque liberal. Aconteceu assim porque o sistema de representação não ofereceu nenhuma outra opção, já que quase todas as demais forças estavam abraçadas às bandeiras e ao programa e à defesa do lulopetismo. E é justamente onde estas forças se encontram hoje: fazendo do lulopetismo uma bandeira contra o "caos".
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