Muito se fala sobre como o recém-eleito presidente dos EUA, Donald Trump, está supostamente em guerra com o "Deep State" ou o "Estado paralelo" (e o aparato de inteligência) - por conta de algumas da escolhas de nomeações anunciadas referentes a certos cargos-chave do governo dos EUA. É verdade que Trump nomeou alguns "outsiders" (ou indivíduos "estranhos no ninho", dissidentes) para o cargo de Diretor de Inteligência Nacional (DNI), e também para chefiar o Pentágono e, surpreendentemente a própria CIA. Por outro lado, ele também escolheu o senador "Hawk" ("falcão") Marco Rubio para liderar o Departamento de Estado. Nos EUA, os políticos que defendem uma política externa agressiva e beligerante são geralmente chamados de "falcões" (hawks) - em se tratando da superpotência global, essa posição beligerante é a tradicional e qualquer coisa que vá na contramão disso constitui uma dissidência.
Trump escolheu Tulsi Gabbard (ex-congressista do Partido Democrata) como DNI. Ela já declarou publicamente que Washington não deveria interferir na Síria e que o presidente russo Vladimir Putin tinha lá suas razões para iniciar a campanha militar russa na Ucrânia. Tais visões são consideradas radicais ou mesmo heresias dentro do Establishment americano. Gabbard, no entanto, tem pouca experiência com trabalho especializado de inteligência. As 17 agências de inteligência (a chamada "sopa de letrinhas" de espionagem por causa do grande número de siglas) estarão todas se reportando a Tulsi Gabbard.
O nome de Pete Hegseth, indicado por Trump para assumir como Secretário de Defesa, também gerou controvérsia entre os militares. O apresentador da Fox News de 44 anos e veterano da Guarda Nacional do Exército que estará comandando o Pentágono foi descrito por Paul Rieckhoff (fundador do Independent Veterans of America - uma instituição que representa veteranos militares) como sendo "o indivíduo menos qualificado já nomeano para o cargo de Secretário da Defesa na história americana".
Por último, eu citaria ainda o caso de John Ratcliffe (ex-DNI), nomeado para assumir o cargo de Diretor da CIA. Ele é visto como basicamente um quadro radicalmente leal a Trump, e é acusado pelos falcões dos EUA de ser muito "brando" com a Rússia (embora seja um "falcão" em relação à China).
Reid Smith (Vice-Presidente do importante jornal Foreign Policy) e Dan Caldwell (Consultor de Política Pública no think-thank Defense Priorities) argumentam, em seu artigo na Foreign Policy, que “os Estados Unidos estão levando a cabo uma política externa exageradamente abrangente e devem corrigir esse rumo”, e que a presidência de Donald Trump poderia ser a saída para tal situação.
Eles alertam que o “Partido Republicano deve adotar a abordagem de política externa com base na ‘arte da negociação’ ['art of the deal'] de Trump” para uma “diplomacia de pulso firme” [tough-minded diplomacy] - ou seja, com foco em “negociações diplomáticas” em vez de seguir com um “consenso de política externa neoconservador” [neocon], que foca sobretudo em intervencionismo e beligerância.
A nação americana, afinal, argumentam eles, atingiu, após duas décadas de “enroscos militares”, um estado de “fadiga de batalha” e, além disso, já “operam com universo de várias restrições”, atuando com uma capacidade industrial já limitada. Assim, o slogan trumpist “America First” ("a América em primeiro lugar") deveria traduzir-se em “um compromisso com o realismo político em Relações Internacionais e uma política extena mais contida”, e o Grand Old Party (GOP), como o Partido Republicano é frequentemente chamado, deveria priorizar “os interesses americanos em vez de buscar manter a hegemonia dos valores liberais pelo mundo afora”.
Tudo isso parece muito bonito e bastante otimista, e faz sentido, considerando-se algumas das nomeações de Donald Trump mencionadas acima. O anúncio da nomeação de Marco Rubio, no entanto (junto com outros "falcões" linha-dura em relação à China), deveria deixar qualquer um com uma pulga atrás da orelha sobre a possibildiade Washington, com Trump, realmente adotar uma política externa muito mais contida. Por um lado, com Rubio, o risco de novas intervenções americanas na Venezuela e na América Latina em geral aumentará - o que confirma o que escrevi na semana passada sobre o monroeísmo ser o outro lado da moeda do suposto "isolacionismo" de Trump. Trata-se de diminuir a intervenção no resto do mundo, mas continuando a encarar a América Latina como "quintal" natural dos EUA. A escolha de Rubio parece "equilibrar" e se contrapor aos nomes de Ratcliffe, Hegseth e Gabbard (que são, em maior ou menor, grau, dissidentes em relação aos falcões). É uma nomeação que também envia uma mensagem bem clara e parece ser uma maneira de "apaziguar" o Establishment diplomático-militar mais linha-dura.
Nos EUA, o Secretário de Estado é análogo ao Ministro de Relações Exteriores ou o Chanceler de outros países. Ele chefia o Departamento de Estado (responsável pela política externa e relações internacionais do país), e é o segundo membro mais graduado do Gabinete do Presidente, depois do Vice-Presidente, estando em quarto lugar na linha de sucessão presidencial. Costuma-se dizer que não existem duas agências dos EUA que trabalhem “de forma mais próxima” (em nações estrangeiras) ou que atuem de maneira mais estreita e conjunta do que o Departamento de Estado e a CIA (Central Intelligence Agency), a agência de espionagem e operações clandestinas.
Além disso, de acordo com Joseph W. Wippl (ex-oficial da CIA e professor de Relações Internacionais na Universidade de Boston), “algumas responsabilidades da CIA cobrem áreas que são idênticas ao que os relatórios do Departamento de Estado já abrangem, porém fazendo-o através de meios clandestinos em vez de contatos oficiais”.
Ele acrescenta: “na minha vasta experiência, o maior efeito benéfico na política externa americana ocorre quando a atuação e relatórios do Depertamento de Estado e da CIA se encaixam ou se alinham. Posicionamentos comuns nem sempre ocorrem, e a tensão entre as duas agências tem acontecido quando há divergências”.
Ora, se o Secretário de Estado for um falcão “linha-dura” do Establishment como Rubio e, ao mesmo tempo a Diretora de Inteligência Nacional e outros indivíduos nomeados para cargos importantes forem dissidentes e “pombos” e não falcões (no que diz respeito à Síria e outras questões) ou forem outsiders (os "estranhos fora do ninho") radicais e leais ao Presidente pessoalmente, então o conflito interno está fadado a ocorrer dentro da chamada comunidade de inteligência e dos altos escalões da burocracia. Isso pode comprometer a governabilidade. Dessa forma, exercer uma política externa minimamente mais contida será um desafio - e fazer exatamente o oposto também será um desafio.
Longe de ser uma "ruptura" com uma política externa tradicionalmente intervencionista, a escolha de Marco Rubio sinaliza antes uma continuidade. Rubio é um cubano-americano de Miami, linha dura. Já as outras escolhas de Trump (além do nome de Rubio) são orientadas sobretudo por ideologia e lealdade pessoal - elas também são escolhas questionáveis em termos de currículo, especialização e qualificações. Porém, elas parecem, sim, sinalizar uma ruptura. Qual é o sentido disso?
Embora ninguém possa afirmar com certeza de que Trump realmente entregará uma política externa mais "contida" (como prometido por ele e como Reid Smith e Dan Caldwell esperam), o que se pode ter certeza mesmo é que Trump tentará "domar" os serviços de inteligência para poder levar a cabo melhor seus próprios objetivos políticos e pessoais. Trata-se sobretudo de aumentar os poderes presidenciais, o que está em linha com toda a agenda de Trump de expandir o Poder Executivo, conforme descrito no Projeto 2025.
Em Trump v. Estados Unidos, a Suprema Corte americana já decidiu que o Presidente não pode ser processado criminalmente por "atos oficiais", e tal imunidade lhe fornece uma base firme para levar adiante tais planos. Os presidentes dos EUA já são ditadores temporários de jure quando se trata de política externa (por exemplo, eles podem na prática travar guerras sem a aprovação do Congresso), mas são, é claro, limitados na prática pelo "Estado Paralelo" ou Deep State. Trump quer transformar os Presidentes americanos em quasi-ditadores quando se trata de política doméstica também - e enquanto isso, ele também quer desafiar o Estado Paralelo. Essas são metas muito ousadas para qualquer um - mesmo para alguém que está tão bem posicionado e fortalecido como Trump está atualmente (com maioria na Câmara e Senado etc).
Além disso, historicamente, sempre que um presidente americano tentou domar os serviços de inteligência, isso nunca terminou bem. Kennedy, Johnson, Nixon e Ford todos desconfiavam da CIA - e todos aprenderam a conviver com ela - exceto Nixon, que foi deposto; e Kennedy, que declarou que "estilhaçaria a CIA em mil pedaços e os espalharia aos ventos". O assassinato de Kennedy permanece mal explicado até hoje.
Considerando-se as muitas falhas que o Serviço Secreto demonstrou em relação à tentativa de assassinato de Trump na Pensilvânia (durante a campanha eleitoral presidencial), sem mencionar todas as inconsistências e suspeitas no caso, o recém-eleito Presidente americano pode ficar em uma posição muito vulnerável se tentar desafiar demais o chamado Estado Paralelo/Deep State - especialmente considerando-se o histórico dos EUA quando se trata de intrigas políticas e tentativas de assassinato contra autoridades.
Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos.
Traduzido e adaptado, pelo próprio autor, de "Trump war with Deep State is about increasing his own powers", (o autor escreveu uma versão mais curta deste artigo originalmente em inglês)
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