O Sol da Pátria debateu o fascismo em uma live (clique para ver) em seu canal do Youtube em maio deste ano de 2024: Fascismo eterno: categoria ou delírio? Eu, Alex Sugamosto e Uriel Araujo partimos do conceito de Ur-Fascismo, de Umberto Eco (conceito que repercute bastante no campo político-partidário mas também entre certos analistas que surgem a cada dia posando de especialistas), para tentarmos fazer uma análise mais objetiva [criticando o conceito proposto por Umberto Eco, que não era exatamente ou historiador ou cientista político especialista em fascismo. Nota do Sol da Pátria]. Argumentamos, na live citada, que o fascismo não pode ser reduzido à experiência italiana, porém tampouco pode ser visto de maneira a-histórica, como se pairasse sobre as sociedades de forma perene, uma categoria a ser brandida de modo acusatório contra o inimigo político da vez. Nossa conversa chamou atenção do professor Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, que tem artigos e pesquisa sobre o neofascismo e que já citou o Sol da Pátria em alguns de seus trabalhos:
Acompanho o trabalho da Frente Sol da Pátria — elaborei um artigo recente no qual abordo a formação do grupo no interior de uma autointitulada “dissidência Tradicionalista” no Brasil — e me senti na obrigação de comentar recente live do dia 15 de maio “Fascismo eterno”: categoria ou delírio? (youtube.com), pois é uma boa amostra das linhas argumentativas do grupo e também dos equívocos de interpretação que vêm sendo disseminados em iniciativas de esclarecimento conceitual do fascismo
[fonte: Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, A Sol da Pátria frente ao Fascismo Eterno]
Já critiquei o artigo de Vasconcelos na postagem A Dissidência Tradicionalista como objeto da Academia [também disponível aqui]. Diferente do que diz, o professor parece acompanhar mal o trabalho do nosso movimento [Sol da Pátria], além de cometer erros muito básicos quando se aventura no tema do Tradicionalismo, cujas obras ele parece conhecer apenas pela opinião de terceiros [vide sua caracterização de Guénon, criticada aqui] . Como veremos, a análise da live que ele publicou em seu Medium foi certamente motivada pelo incômodo com as nossas críticas às visões generalistas, meramente abstratas e desistoricizadas do fenômeno fascista, e que afetam os pressupostos da pesquisa que ele vem desenvolvendo.
No texto, o professor Vasconcelos admite recorrentemente o acerto de nossa abordagem e deixa escapar, em certa altura, um elogio à nossa precisão analítica.
[...] uma série de ressalvas são feitas a argumentos de Eco que, de forma isolada, são pertinentes mas, ao desconsiderem a síntese do conjunto, “afogam o bebê junto com a água do banho”. (...) embora acertem em situar as tensões constitutivas do fascismo nas relações entre elitismo e populismo (...) o Sol da Pátria recusa nomear como fascista o anarcocapitalismo de Milei ou o bolsonarismo, vistos como fenômeno mais próximo ao neoliberalismo autoritário. Isto pode ser correto do ponto de vista analítico, afinal, não são exemplos de governos de dirigismo nacionalista estatal (...)
Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, A Sol da Pátria frente ao Fascismo Eterno
Ele em todo caso não se mostra disposto a refutar as críticas que fizemos [em conversa informal, durante uma live], algumas das quais ele resume de forma rápida, ou de contestar diretamente os referenciais teóricos que usamos (como Zeev Sternhell e Stanley Payne). Vasconcelos se limita, na verdade, a rotular de "parcial" nosso entendimento dos debates teóricos sobre o fascismo, mencionando os referenciais que ele próprio usa, como Karl Polanyi, Robert Paxton e Ruy Fausto.
O grande problema de Vasconcelos é que os autores que ele cita para fundamentar sua abordagem generalista do fascismo têm leituras muitas vezes francamente incompatíveis sobre esse objeto. O professor simplesmente ignora essas divergências centrais e, a partir de um recorte pouco criterioso, gera uma barafunda, sem se importar com as contradições explícitas. O pesquisador parece que está chutando para todos os lados para ver se a bola entra em algum momento. Mas, de forma até decepcionante, seu texto desemboca em uma conclusão que surpreende apenas pela banalidade.
Não vou tratar da questão em profundidade, só apontar algumas insuficiências bastante flagrantes deixadas no ar por Vasconcelos:
1. O professor Rocha Vasconcelos diz construir sua perspectiva em diálogo com Karl Polanyi, mas desconsidera o ponto principal da tese deste autor, a de que o fascismo é essencialmente um ataque ao socialismo e ao cristianismo:
"O Fascismo Vitorioso não é apenas a queda do Movimento Socialista: é o fim do Cristianismo em todas as suas formas, excepto nas mais degradadas. O ataque comum do fascismo alemão tantos às organizações do movimento da classe trabalhadora quanto às Igrejas não é uma mera coincidência. É uma expressão simbólica daquela essência filosófica oculta do fascismo que o torna o inimigo comum tanto do socialismo como do cristianismo. Este é a nossa principal objeção"
[tradução nossa - Nota do Sol da Pátria].
No original, em inglês:
Victorious Fascism is not only the downfall of the Socialist Movement: it is the end of Christianity in all but its most debased forms. The common attack of German Fascism on both the organisations of the working-class movement and the Churches is not a mere coincidence. It is a symbolic expression of that hidden philosophical essence of Fascism which makes it the common enemy of Socialism and Christianity alike. This is our main contention."
[Polanyi, "The Essence of Fascism"]
Francisco Thiago Rocha Vasconcelos mobilizar Polanyi (citado acima) enquanto, ao mesmo tempo, defende, ao lado de Ruy Fausto, que "os iliberalismos de hoje parecem abandonar a centralidade da ideia do movimento ou regime como uma religião laica ou secular (as suásticas, os fascios, os grandes rituais e cerimoniais) e buscam se vincular a religiões tradicionais, o que é um argumento bastante pertinente quando observamos como é importante a vinculação religiosa ou civilizacional nos projetos de matriz Tradicionalista".
Ora, fazer isso não passa de uma mixórdia sem pé nem cabeça. Se a essência filosófica do Fascismo o torna incompatível com o cristianismo [como pretende Polanyi], então não tem sentido alegar que a atualização deste fenômeno político se dá abraçada com formas tradicionais desta religião [como pretende Ruy Fausto]. Além disso, a alegação de Polanyi de que o Fascismo tem uma essência filosófica tampouco é compatível com a tese do próprio professor Vasconcelos, como veremos.
2. O papel do Tradicionalismo no ''combo'' de características que Vasconcelos vê no Fascismo seria o de "destacar o sentido mítico do racialismo no movimento ideológico fascista, bem como sua concepção elitista e cíclica da história" [Fonte: Vasconcelos, "As origens intelectuais do Fascismo e suas reinvenções"]. O autor se apóia em Benjamin Teitelbaum para sustentar a tese de que o Tradicionalismo é o meio pelo qual o vitalismo e o totalitarismo, descritos por Polanyi como elementos constitutivos da essência fascista, se reatualizam no século XXI. Já critiquei a interpretação superficial de Teitelbaum sobre o tempo cíclico em Tradicionalismo, Perenalismo e os erros de Teitelbaum, mas deixo ainda, sobre o tema, uma citação do próprio René Guénon [principal nome da escola Tradicionalista]:
"O que acabamos de dizer sobre o desenvolvimento da manifestação representa uma concepção que, conquanto exata no conjunto, é por demais simplificada e esquemática e pode dar a entender que esse desenvolvimento se efetua em linha reta, num sentido único e sem nenhum tipo de oscilação. A realidade, no entanto, é bem mais complexa. Com efeito, como já indicamos, em tudo é possível identificar duas tendências opostas, uma descendente e a outra ascendente ou, caso queiramos fazer uso de outro modo de representação, uma centrífuga e outra centrípeta. Da predominância de uma ou de outra procedem duas fases complementares da manifestação: uma que se afasta do princípio e outra que a ele retorna, as quais são muitas vezes comparadas simbolicamente aos dois movimentos do coração ou às duas fases da respiração. Embora essas duas fases sejam, de ordinário, descritas como sucessivas, deve-se conceber que as duas tendências às quais elas correspondem agem sempre de modo simultâneo, ainda que em proporções diversas."
[Guénon, "A idade sombria" (capítulo 1) in: A Crise do Mundo Moderno. Editora Bismillah, selo "Estrela da Manhã", 2022, p. 17-18]
Como escrevi em publicação no site do Sol da Pátria:
"Se a moderna ideologia do progresso se fundamenta em um tempo que é uma sucessão linear de eventos conectados por uma causalidade eficiente e direcionados para uma melhora civilizacional progressiva (“progresso”, “evolução”), o Tradicionalismo, diz Teitelbaum, seria o oposto disso: um conceito de tempo igualmente linear que, de um momento ideal (espécie de Idade de Ouro), vai se sucedendo em uma série irrefreável de pioras. Esse modelo tosco é um mal entendido da doutrina dos ciclos tal como era entendida pelos autores tradicionalistas. Partindo desse mal entendido, o acadêmico pode insistir em declarações estapafúrdias - por exemplo, afirma, como veremos, que ''tradicionalistas'', na política, se devotam ferreamente à ideia de que ''quanto pior, melhor''. O problema é que não é essa a doutrina dos ciclos - este é o modo rasteiro como o autor a encara, achatando toda e qualquer concepção de tempo nas medidas da percepção do homem iluminista. Teitelbaum iguala a doutrina dos ciclos no Tradicionalismo a uma perspectiva cronológica, regida por lei férrea de decadência. Seria uma inversão da moderna ideologia do progresso (segundo a qual os níveis de civilização aumentam naturalmente com a passagem dos anos).Teitelbaum não entendeu, contudo, que o próprio ''tempo cronológico'' é um dos elementos no interior da 'temporalidade tradicional'. É ''parte'', mas não pano de fundo. A doutrina metafísica dos ciclos implica outras formas de relação, regidas por diferentes níveis de realidade, que interagem por analogias, como é típico do pensamento tradicional."
3. Como se vê, não há bem um "fatalismo" tradicionalista. A refutação do suposto ''fatalismo'' do Tradicionalismo é o menor dos problemas de Vasconcelos, contudo. Mark Sedgwick, estudioso de Tradicionalismo muito mais perspicaz que Teitelbaum, nega que o conceito de raça tenha qualquer importância no pensamento guenoniano:
"Um fator que Guénon não trazia para suas análises era a raça. Como a maioria das pessoas de sua época, ele nunca questionou a ideia de que havia algo como raça no abstrato, mas ele atribuía pouca importância a isso, e questionava a maneira como certas raças específicas foram identificadas. Ele negou que houvesse algo como uma "raça" europeia, pois os europeus eram muito variados, embora certamente houvesse uma mentalidade europeia (ocidental, moderna). Ele também negou a existência de uma raça "ariana", descrevendo isso como "uma invenção da imaginação super fértil dos orientalistas". Guénon, então, não era racista. Outros tradicionalistas, no entanto, eram".
[Sedgwick, Traditionalism: The Radical Project for Restoring Sacred Order, Oxford University Press, 2023].
No original, em inglês:
One factor that Guénon did not bring into his analyses was race. Like most people of his time, he never took issue with the idea that there was such a thing as race in the abstract, but he attached little importance to it, and took issue with the way that certain specific races had been identified. He denied that there was such a thing as a European ‘race’, as Europeans were too varied, even though there was certainly a European (Western, modern) mentality. He also denied the existence of an ‘Aryan’ race, describing this as ‘an invention of the over- fertile imagination of the orientalists’. Guénon, then, was not a racist. Other Traditionalists, however, were."
[Sedgwick, Traditionalism: The Radical Project for Restoring Sacred Order, Oxford University Press, 2023]
É verdade que Segwick, citado acima, qualifica Julius Evola de racista. Mas é impossível ver no racismo um traço importante da Escola Tradicionalista (ou Perenialista), como faz Vasconcelos, dada a desimportância do conceito de raça em nomes centrais como Guénon, Schuon e Seyyed Hossein Nasr.
Escreve ainda o já citado Sedgwick:
"Finalmente, a narrativa Tradicionalista é às vezes um tanto racista. Guénon negou a existência de uma raça "ariana", e Nasr usou o termo ocasionalmente, mas nenhum dos dois incorporou o racismo no tradicionalismo. Schuon escreveu um artigo notavelmente questionável sobre "O significado da raça", mas, novamente, não incorporou o racismo em seu tradicionalismo. Evola, em contraste, o fez. Mesmo assim, sua narrativa histórica é muito menos dependente do racismo do que a de um Gobineau."
Sedgwick, "Traditionalism: The Radical Project for Restoring Sacred Order", 2023, p. 91
[Tradução nossa - Nota do Sol da Pátria]
No texto inglês:
Finally, the Traditionalist narrative is sometimes somewhat racist. Guénon denied the existence of an ‘Aryan’ race, and Nasr used the term occasionally, but neither incorporated racism into Traditionalism. Schuon wrote a remarkably objectionable article on ‘The Meaning of Race’, but again did not incorporate racism into his Traditionalism. Evola, in contrast, did. Even so, his historical narrative is far less reliant on racism than is that of Gobineau."
[Sedgwick, "Traditionalism: The Radical Project for Restoring Sacred Order", 2023, p. 91]
4. René Guénon também tem críticas explícitas ao irracionalismo, ao vitalismo, ao intuicionismo, ao misticismo e ao evolucionismo [de modo que fica complicado aproximar o Tradicionalismo desses autores do fascismo]. Seria cansativo citar as inúmeras passagens sobre estes pontos. Ressalto que Evola seguia o francês [Guénon] em muitas dessas críticas. Aliás, Polanyi fazia de Nietzsche [ferrenho crítico do platonismo] o filósofo mais típico do vitalismo [que seria inspiração do fascismo] e qualquer um familiarizado com as obras Tradicionalistas compreende, imediatamente, a filiação neoplatônica destes autores Tradicionalistas. Enfim, alguns exemplos abaixo:
"[N]unca será demais desconfiar de todo e qualquer apelo ao ''subconsciente'', ao ''instinto'', à ''intuição'' infrarracional ou mesmo a uma ''força vital'' mais ou menos mal definida -- em uma palavra, a todas essas coisas vagas e obscuras que tendem a ser exaltadas pela nova filosofia e psicologia e que conduzem de modo mais ou menos direto a uma tomada de contato com os estados inferiores. Com mais razão ainda, é preciso tomar cuidado (pois aquilo de que se trata é muitíssimo capaz de assumir os disfarces mais insidiosos) com tudo quanto induza o ser a ''se fundir'' -- seria preferível e mais exato dizer "se confundir" ou mesmo ''se dissolver'' -- numa espécie de ''consciência cósmica'' que exclui toda transcendência e, portanto, toda espiritualidade efetiva. É essa a consequência última de todos esses erros antimetafísicos que, sob seu aspecto mais especialmente filosófico, são designados por termos como ''panteísmo'', ''imanentismo'' e ''naturalismo'', coisas aliás estreitamente conexas, e determinadas pessoas certamente recuariam diante dessa consequência caso soubessem exatamente do que falam."
[Guénon, "A confusão entre o psíquico e o espiritual" (capítulo 35) in: O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Editora Bismillah, selo "Estrela da Manhã", 2022, p. 244-245]
Outro exemplo:
"Aquilo do que estas teorias se aproximam mais, e onde é necessário procurar provavelmente sua origem, são as concepções «vitalistas», que reduzem o elemento médio do composto humano à função de «princípio vital» somente, e que apenas parecem admiti-lo mais para explicar que o espírito possa mover o corpo, problema insolúvel na hipótese cartesiana. O vitalismo, porque expõe mal a questão, e porque, ao não ser em suma mais que uma teoria de fisiologistas, coloca-se em um ponto de vista muito especial, dá fundamento a uma objeção do mais simples: ou se admite, como Descartes, que a natureza do espírito e a do corpo não têm o menor ponto de contato, e então não é possível que haja entre eles um intermediário ou um termo médio; ou se admite ao contrário, como os antigos, que têm uma certa afinidade de natureza, e então o intermediário torna-se inútil, já que esta afinidade basta para explicar que um possa atuar sobre o outro. Esta objeção vale contra o vitalismo, e também contra as concepções «neo-espiritualistas» no tanto que procedem dele e no tanto que adotam seu ponto de vista; mas, entenda-se bem, não pode nada contra as concepções que consideram as coisas sob relações completamente diferentes, que são muito anteriores ao dualismo cartesiano, e, por conseguinte inteiramente estranhas às preocupações que este criou, e que olham ao homem como um ser complexo para responder tão exatamente como é possível à realidade, e não para contribuir uma solução hipotética a um problema artificial. "
[Guénon, "Definição de espiritismo" (capítulo 1) in: O Erro Espírita]
De Evola:
"Enquanto a adoração da razão era a marca registrada da era anterior, os tempos atuais são certamente marcados por um irracionalismo multifacetado. A ênfase mudou para o que parece ser irredutível à razão e ao intelecto. Uma mística da "Vida" foi proclamada, do impulso vital e da pura imanência. Experiência direta, pura existência e ação em todas as suas formas passaram a ser promovidas. Em oposição à suposta soberania do pensamento claro, a primazia foi afirmada para tudo dentro das profundezas do ser humano que não pode ser rastreado até o âmbito do pensamento. Posições típicas incluem as de Ludwig Klages e Oswald Spengler; esses homens parecem ser incapazes de conceber o espírito, Geist, como algo diferente do intelecto abstrato - algo que, na visão deles, contrasta com a "vida" e a alma, com o que está conectado ao sangue, ao solo e ao pano de fundo primário da existência, cujo direito superior, eles sustentam, agora deve ser reconhecido".
Evola, L'arco e la clava [Tradução nossa - Nota do Sol da Pátria]
Na edição inglesa consultada:
"Whereas the worship of reason was the hallmark of the previous age, the present times are certainly marked by a multifaceted irrationalism. The emphasis has shifted onto what seems to be irreducible to ratio and the intellect. A mystique of ‘Life’ has been proclaimed, of the vital impulse and of pure immanence. Direct experience, sheer existence, and action in all their forms have come to be promoted. In opposition to the alleged sovereignty of clear thought, primacy has been affirmed for everything within the very depths of the human being which cannot be traced back to thought. Typical positions include those of Ludwig Klages and Oswald Spengler; these men would appear to be incapable of conceiving the spirit, Geist, as anything other than the abstract intellect — something which, in their view, stands in contrast to ‘life’ and the soul, to what is connected to the blood, to the soil, and to the primary background of existence, the superior right of which, they hold, now ought to be acknowledged."
[Evola, "The myth and fallacy of irrationalism" (chapter 7) In: The bow and the club, Arktos, 2018 - tradução inglesa]
5. Por fim, a confusão teórica do professor Vasconcelos deságua na tese banal de que o fascismo se define por um certo ''comportamento". Ou seja, não podendo se ater ao rigor analítico que o faria restringir o termo de um modo que o desagrada, e na impossibilidade de defender a tese furada, e criticada por nós, da 'personalidade autoritária' ou de uma ideologia a-histórica, ele aposta então em uma definição genérica, definição esta que associa a Paxton:
"Uma mediação possível é a ideia de fascismo como comportamento político, com diferentes possibilidades de institucionalização (Robert Paxton) e, a partir disso, estudos comparativos sobre diferentes modelos autoritários ou iliberais, fascistas ou não, nos contextos de concorrência interimperialista e de crise do capitalismo."
[fonte: Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, A Sol da Pátria frente ao Fascismo Eterno]
Vasconcelos não explica, contudo, como ele conciliaria Paxton, que nega que os islamitas sejam fascistas, com sua tentativa de seguir Ruy Fausto [que enxerga nos ataques aos jornalistas do Charlie Hebdo, em 2015, um sinal da ressurgência do totalitarismo]. Tampouco explica como os argumentos contra definições psicologizantes do fascismo não se aplicariam a este novo tiro entre os muitos tiros para todos os lados que ele dá em seu texto. Tampouco aponta como a definição de fascismo como "comportamento político" se adequa à posição de Karl Polanyi, que define o Fascismo por sua essência filosófica.
Enfim, os problemas de Paxton já foram explicitados por Zeev Sternhell:
"[S]e apenas os regimes contam, não as ideologias, como se distingue entre fascismo e autoritarismo? Qual é a grande diferença entre a Itália e as outras ditaduras? Se apenas a prática importa, como se pode esquecer que, a este respeito, desde o início, a ditadura de Mussolini foi muito menos extrema, não apenas do que o regime de Hitler que surgiria na Alemanha, mas também do que a tirania de Antonescu na Romênia e de Horthy na Hungria? Por outro lado, não houve uma grande diferença em relação à prática entre o regime italiano e as outras ditaduras "mais brandas" do período. O mesmo é verdade em certos aspectos, particularmente no que diz respeito aos judeus, no que diz respeito ao regime ditatorial de Vichy. [...] A brutalidade de um regime certamente não é um critério para julgar seu caráter fascista: é a ideologia, a visão do homem e da sociedade, os objetivos que um movimento estabelece para si mesmo, sua filosofia da história, que são importantes. O fascismo tinha uma visão da sociedade: ele lutou contra a herança do Iluminismo, da democracia e o conteúdo intelectual (mas não econômico) do liberalismo".
[Zeev Sternhell em resposta aos editores - ‘The Anatomy of Fascism’ Zeev Sternhell, reply by Adrian Lyttelton]
No texto inglês:
"[I]f only regimes count, not ideologies, how does one distinguish between fascism and authoritarianism? What is the great difference between Italy and the other dictatorships? If only practice matters, how can one forget that in this respect from the very beginning the Mussolini dictatorship was far less extreme not only than the Hitler regime that was to arise in Germany, but also than Antonescu’s tyranny in Romania and Horthy’s in Hungary? On the other hand, there was not a great difference with regard to practice between the Italian regime and the other “softer” dictatorships of the period. The same is true in certain respects, particularly with regard to the Jews, where the dictatorial Vichy regime is concerned. [...]The brutality of a regime is certainly not a criterion for judging its fascist character: it is the ideology, the vision of man and society, the aims a movement sets itself, its philosophy of history, that are important. Fascism had a vision of society: it fought the heritage of the Enlightenment, democracy, and the intellectual (though not the economic) content of liberalism."
[Zeev Sternhell - ‘The Anatomy of Fascism’ Zeev Sternhell, reply by Adrian Lyttelton]
Indo além, a definição do fascismo como um ''comportamento'' nos faz entrar no terreno da retórica política, em que estas categorias se tornam xingamentos, ganham o perfil acusatório que é inadequado a uma abordagem científica. É interessante como o professor Vasconcelos se sente incomodado com as críticas que fizemos na live à esquerda identitária [ou woke]:
"De modo sintomático, é à esquerda e aos “antifascistas” que se dirigem [na live do Sol da Pátria] adjetivações como machartista e mesmo “juventude hitlerista” (!) em razão das críticas que recebem ou do “cancelamento” que se dizem vítimas: “Os supostos fascistas hoje são muito mais libertários, em certo sentido, do que esses caras que se dizem defensores da liberdade”, concluem. Isso é coerente com as alianças entre o Sol da Pátria e o liberalismo radical-conservador do MBL, mas delirante do ponto de vista conceitual e uma ressurgência da prática olavista do insulto como desumanização de oponentes."
[fonte: Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, A Sol da Pátria frente ao Fascismo Eterno]
Nossas críticas ao identitarismo de esquerda se direcionam também a elementos ideológicos que este campo partilha com o fascismo, como o repúdio ao racionalismo, à modernidade, e às bases do pensamento ocidental. Mas, caso nos detivéssemos ao comportamento e à prática política, estaríamos também perfeitamente fundamentados histórica e sociologicamente. Diferente do que diz o professor, as táticas dos movimentos de massa socialistas e fascistas foram muito similares nos anos 1920 e 1930. Roderick Stakelberg, que discorda que fascismo e socialismo sejam ideologias semelhantes, reconhece que ambos os movimentos tinham práticas parecidas no entreguerras:
"A fim de competirem proveitosamente com os novos partidos de classe média e classe trabalhadora que surgiram na Europa no final do século XIX ou início do século XX, os grupos conservadores experimentaram cada vez mais diversas técnicas de apelo às massas, algumas lançadas com pioneirismo pelos partidos de esquerda a que se opunham. No fascismo, o experimento mais radical em mobilização de massas para fins antidemocráticos, essas técnicas foram aperfeiçoadas a um grau sem precedentes. Se tinham uma forte semelhança com as técnicas da esquerda radical, isso não chega a ser surpreendente, pois os fascistas se empenharam em combater usando as mesmas armas usadas pelos comunistas. Para competir de maneira eficaz com socialistas e comunistas pelo apoio dos trabalhadores, os fascistas trataram de adotar slogans e símbolos socialistas para seus próprios fins. A mobilização fascista do povo, através da propaganda, concentrações de massa, formações paramilitares e violência orquestrada, ultrapassou os padrões tradicionais de conduta política, da mesma foram que as práticas comunistas."
[Stackelberg, "Fascismo e a tradição conservadora" (capítulo 1) In: A Alemanha de Hitler, Imago, 1999]
Assim, o padrão comportamental da esquerda identitária atual não está dissociado do padrão apresentado por socialistas em boa parte de sua história. Não surpreende que alguns militantes da própria esquerda tenham notado as características fascistóides dos movimentos woke:
"[H]á quem implique com o emprego do vocábulo “fascismo” com relação a manifestações (verbais e práticas) da movimentação identitarista. É academicismo. Pelo seguinte. A expressão “fascismo” ocupa dois níveis distintos na dimensão semântica da linguagem. Num desses níveis, é sintagma histórico, conceitual. Em outro, pertence ao sermo vulgaris: é palavra comum do discurso cotidiano, devidamente dicionarizada, como se pode ver no Aurélio e no Houaiss. Nos meus escritos sobre identitarismo, só empreguei a expressão “fascismo”, em sentido histórico-conceitual, uma única vez. Foi no ensaio “Diversidade em Alta, Democracia em Risco”, estampado na coletânea A Crise da Política Identitária. Nesse texto, falei do retorno do fantasma do Estado fascista, ainda que modificado, com o velho corporativismo mussolinista se desdobrando no corporativismo diversitário do identitarismo. Lembrei então que o corporativismo fascista foi pensado como um sistema de representação de classes e grupos de interesse, com o objetivo de transcender o individualismo e a luta interclassista. Sua finalidade: consolidar instituições permanentes, em função da harmonia social. O identitarismo prega uma retomada desse corporativismo em novas bases, com os antigos agrupamentos profissionais do projeto mussolinista substituídos por segmentos rácicos e sexuais, com o propósito de superar o individualismo da democracia liberal através do grupocentrismo. Com a diferença que o corporativismo identitarista não visa à criação de novas instituições, mas ao redimensionamento das atuais, através da partilha censitária dos organismos já existentes, com base em cotas rácico-sexuais. A estatística reinará acima de tudo. E assim ingressaremos na ditadura do demograficamente correto. Acontece que, se a palavra “fascismo” nos ocorre quase automaticamente, diante do furor liberticida do identitarismo, raríssimas vezes fazemos as conexões entre pontos básicos dessa ideologia e o ideário nazista. Mas elas existem – e não são poucas. Posso dar, de imediato, três exemplos. Como no tópico do combate à mestiçagem. Ou, ainda, na “tese” tão solene quanto vazia de que só ariano entende coisa de ariano – só arianos são capazes de entender (e, por isso mesmo, de executar) a música alemã… Troque “ariano” por “negro” – e veja que você já perdeu a conta de quantas vezes topou com essa bobagem racista em panfletos e sermões do identitarismo: só negro entende coisa de negro. Outra conexão: nazistas e identitaristas irmanados na recusa à “verdade” (“academicismo branco”) e à “ciência” (“uma narrativa como outra qualquer”). A “verdade” e a “ciência” – enquanto entidades em si simplesmente não existem. No ensaio “Looking Back on the Spanish War”, de 1942, George Orwell escreveu: “A teoria nazista nega, especificamente, que uma coisa como a ‘verdade’ exista. Não há, por falar nisso, nenhuma ‘ciência’. Existem apenas a ‘ciência germânica’, a ‘ciência judaica’ etc” Bem. Substituam as palavras “germânica” e “judaica” por “branca” e “negra” e o discurso, no fundo, é o mesmo. Ainda nessa batida, em outro texto de Orwell, o arquifamoso 1984 14, quando está torturando Winston Smith, o inquisidor O’Brien faz afirmações que parecem expelidas pela boca de algum ideólogo do multicultural-identitarismo: a realidade não é uma coisa objetiva, existindo em si mesma, mas uma “construção social”… Como se fosse pouco, sempre que ouço identitaristas neonegros falando de ancestralidade e raízes raciais, confesso que me vem à mente o identitarismo nazista, ou a política do Blut und Boden 15, “sangue e solo"
[Antônio Risério, "Identitarismo", Lvm Editora, 2024]
Eu poderia continuar citando outros pontos bastante frágeis da posição de Vasconcelos, mas, a esta altura, estaria só "chutando cachorro morto". Porém, devo notar a insistência com que o professor se refere ao Sol da Pátria como um grupo de alianças neoliberais [!!!]. Ora, movimento Sol da Pátria é explicitamente contrário ao neoliberalismo, como é fácil perceber pelos textos e posicionamentos publicados em seus veículos oficiais.
Negamos que o neoliberalismo de Milei, de Bolsonaro ou de Lula seja fascista não por qualquer simpatia a esse modelo [neoliberal], mas apenas por rigor conceitual e analítico, rigor este que o próprio Vasconcelos reconhece em seu texto. Nosso posicionamento, na véspera das eleições presidenciais de 2022, afirma logo no primeiro parágrafo que
"A aplicação sistemática do neoliberalismo nos levou a décadas perdidas de reprimarização da economia, acelerada desindustrialização e defasagem tecnológica, além do avanço de organizações criminosas sobre o aparato estatal. O país carrega vários sinais de esgarçamento social e mergulhou em profunda crise de legitimidade a partir de 2013."
E isso está em perfeita consonância com nosso Manifesto e outros textos:
"[O] capitalismo atual se fundamenta em uma lógica individualista que impulsiona a despersonalização do homem. Desse modo, deve ser substituído por novas formas de produção e distribuição da riqueza apropriados às culturas comunitárias do povo brasileiro e às necessidades de construção de um Estado soberano.[...]Ora, o soerguimento de uma civilização fundada na Justiça e na brasilidade não pode abdicar de sua realização também no campo econômico- social. Buscamos inspiração em todos os modelos cooperativistas e distributivistas (na tradição de G. K. Chesterton e outros), bem como nos chamados socialistas utópicos e cooperativistas, e também, separando o joio do trigo, no que há de melhor na vigorosa tradição de pensamento nacionalista e mesmo marxista, a fim de criar condições para a superação da exploração do trabalho pelo capital, e para a difusão da propriedade, incluindo os meios de produção, por todo o tecido social. Trata-se de, ao máximo, unir, pelo cooperativismo e outros meios, trabalho e capital, reconhecendo no Trabalhador a força produtiva por excelência – o que não implica de forma alguma abolir a figura do empreendedor (a serviço do bem comum), personagem indispensável para o desenvolvimento nacional."
Vide ainda:
"Nós, da Sol da Pátria, movimento suprapartidário e independente, somos patriotas, populistas e trabalhistas, defensores do legado de Brizola e Vargas, legado de Socialismo Moreno a ser reconstruído no século XXI. [...] Como trabalhistas que somos, sempre defenderemos a reforma agrária, a justiça social, os direitos dos trabalhadores, aposentados, mães e pais. E gostamos tanto da propriedade privada que a queremos para todos, como dizia Brizola!"
Noutra postagem, eu distingui o nosso conservadorismo [trabalhista] da tradição anglo-saxã de mesmo nome:
"Essas mesmas tendências anticapitalistas, estatistas, personalistas, contrárias à desregulação dos mercados, e de apoio a leis trabalhistas e a uma ordem social justa e distributivista, se encontram também no forte tronco do conservadorismo português e espanhol, que também se conecta à nossa História. Os conservadores brasileiros têm de se desvincular do falso conservadorismo texano e olhar mais para as próprias origens. É lá que irão encontrar os princípios da nossa política externa, do nosso desenvolvimento econômico, do desenvolvimento do nosso Estado e do nosso nacionalismo específico - e as mais belas produções e teorias proporcionadas pelo espírito brasileiro (que poderão inspirar um nacionalismo do século XXI). É lá também que vão encontrar esse estadista cada vez mais incompreensível para a esquerda brasileira: Getúlio Vargas.''
Abundam textos em que criticamos a agenda e o modelo neoliberais consolidados no país desde os anos 1990:
"Ora, a divisão e a catástrofe em que estamos mergulhados deitam raízes em muitos dos elementos que marcaram a trajetória do PT e de seus governos. Sempre é bom avisar antes que os mesmos erros se repitam indefinidamente. Alguns exemplos:
1) A ''financeirização'' da economia, com a consolidação de um cartel de bancos que pratica o juros mais extorsivos do planeta [1];
2) Tripé macro-econômico de Armínio Fraga, âncora do neoliberalismo do país [2];
3) Entrega da economia nas mãos do liberal Henrique Meirelles, funcionário do Banco de Boston;
4) Dependência de commodities para segurar as contas externas [3];
5) Desindustrialização, construindo o período de pleno emprego da Era Lula em serviços de baixa qualificação, a famosa ''economia de shopping'', ou seja, baseada em crédito farto, endividamento das classes populares, e empregos precários [4];
6) Perda de sofisticação da indústria e surto de empregos de baixa qualidade, levando à estagnação da produtividade;
7) Diante dos aumentos de salário mínimo em um cenário de perda de produtividade da economia, crescimento de uma inflação de serviços que pesou nos ombros das classes populares;
8 ) Avanço da terceirização nas empresas públicas, na saúde e na educação [5];
9) A política social mais famosa do governo, o Bolsa Família, era copiada da Escola de Chicago, um dos maiores símbolos do neoliberalismo, de onde saiu Paulo Guedes [6];
10) A desigualdade social estrutural do país não diminuiu nos governos do PT. Quem mais ganhou foram os 10% mais da pirâmide de renda do trabalho [7];
11) Realização de reformas da previdência, trabalhistas e previdenciárias sempre que exigido por banqueiros e empresários [8] [...]"
Nossas críticas ao modelo neoliberal, em suma, são muito fáceis de serem encontradas. Um pesquisador só pode ignorá-las por incompetência ou pela tentativa deliberada de distorcer a realidade. Não posso cravar o obstáculo que impede Vasconcelos de reconhecer nossa oposição ao neoliberalismo, mas desconfio que isso seja algo que criaria um problema insolúvel para sua própria tese [dele]. A impressão que seus textos passam, com tantas miscelâneas desconexas e forçadas de barra, é de que o objetivo é formular, a qualquer custo, um conceito de fascismo ou neofascismo em que possa incluir, ao mesmo tempo, movimentos calcados no Tradicionalismo e no neoliberalismo. Por não caber dentro dessa fórmula, o Sol da Pátria representa um problema óbvio. Daí a necessidade de retratar o grupo como um adepto do capitalismo, do neoliberalismo, das ''forças de mercado'', mesmo que tudo que publiquemos e fazemos vá na direção contrária. O mesmo pode ser dito do esforço de nos comparar com ''olavistas'', quando temos capítulos publicados em livro que criticam a leitura que Olavo de Carvalho faz da sociedade brasileira e da Ordem Internacional.
Os artigos de Rocha Vasconcelos trazem a marca de certos cacoetes que ''especialistas no Tradicionalismo'' e ''especialistas no Fascismo'' tem apresentado em debates públicos e acadêmicos. É um mal de natureza mais profunda incrustado na vida universitária, e do qual o caso que menciono é um epifenômeno. Mas a exposição das causas exigiria uma análise mais pormenorizada e detalhada. Por enquanto, basta apontar as reações irrefletidas que o período histórico vem gerando em grupos cuja atividade seria a de explicar e desnudar a realidade social, mas que se tornaram parte do problema e partícipes diretos da 'disputa partidária'. Vivemos um tempo em que muitos 'cientistas sociais' já não conseguem mais fazer ciência.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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