No mês que se passou, comemoramos os 91 anos do nascimento de um mineiro notável de Abaeté. Seu nome? Renato Andrade.
Rebento de família instruída, Renato recebeu apoio dos pais para se aventurar na capital Belo Horizonte e seguir sua vocação natural para a música. O jovem embarcou com destino à capital com o fito de estudar, junto ao mestre Flausino Rodrigues Vale, o violino, instrumento sempre presente nos salões de música erudita em todo o mundo. Com os anos dedicados ao conhecimento do instrumento, Renato almejava chegar ao nível dos grandes nomes da arte: Isaac Stern e Zino Francescatti. O que ele não imaginava, é que aos 35 anos, numa de suas visitas à cidade natal, seria arrebatado pela viola caipira, costumeiramente enjeitada pelas figuras graúdas da classe artística, indissociável que é da figura dos tabaréus da Paulistânia, gente rude, desconfiada e vítima frequente da troça dos citadinos. Ele próprio, alheio àquela musicalidade interiorana, talvez jamais tivesse pensado em se ver 'garrado' à viola, como, daí em diante, passaria o resto de seus dias.
A potencialidade que enxergava naquele amadeirado tão inexpressivo traçou a trajetória de sua vida. Foram mais de trinta anos dedicados exclusivamente a essa herança portuguesa que, a despeito de tão valiosa, carecia de reconhecimento. Pensando nisso, empenhou a credibilidade que já havia adquirido nos anos de pompa na capital para abrir as portas da cena erudita àquela boa companheira da patuleia sertaneja. Nos anos 70, levou-a consigo ao Rio de Janeiro, onde, privando com maestros da relevância de Guerra-Peixe e Edino Krieger, organizou os primeiros concertos de viola do país, apresentando a seus compatriotas aquela velha novidade que constituía a musicalidade caipira, ignorada porque, em seu dizer bem-humorado, ''a viola veio de Portugal, como Carmen Miranda. Só que Carmen foi para Hollywood e a viola ficou na roça".
O decorrer dos anos trouxe a Renato uma perícia inigualável: traduzia as mais sofisticadas composições na simplicidade do ponteio da viola e transportava o público aos quatro cantos do planeta, reproduzindo os sons típicos de cada terra a partir da versatilidade do instrumento. Promoveu, assim, o diálogo entre o popular e o erudito, iniciativa de redescoberta e revalorização da riqueza artística do país que encontrava muitas semelhanças com o empreendimento dos nordestinos que assinavam, à mesma época, o Manifesto do Movimento Armorial, liderado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna, que também contou com o patrocínio de Guerra-Peixe no esforço de preservação e divulgação dos sons típicos do sertão. Com toda a força de sua genialidade e a familiaridade que conquistara junto ao instrumento, Renato maravilhava as plateias dos grandes palcos ao redor de todo o mundo. Pôs de joelhos diante da viola toda uma Europa que, algumas décadas antes, se prostrou face ao gênio de Segovia e venceu preconceito parecido em relação ao violão, que daí em diante garantiu presença no instrumental de grandes orquestras. Aqui, em suas aclamadas apresentações, visitava os corações duros dos moços e moças das metrópoles, tão alheios àquele elemento que só agora passava a brilhar a seus olhos, e, mais que à viola, conferiu dignidade e levou consigo aos palcos também o caipira, que, com pitadas de fantasia e malícia, tão bem retratou em divertidíssimos causos e piadas, contados entre um e outro ponteio.
Dispensava a modéstia: sabia que seu trabalho não tinha precedentes e que seu virtuosismo era irrepetível. Conheceu muito bem a legião de admiradores que angariou com os concertos, participações em inúmeros programas, filmes e em seus álbuns - o primeiro deles lançado em 1977, sob o título 'A Fantástica Viola de Renato Andrade' -, dentre os quais se destacam Ivan Vilela, Almir Sater - com quem, em 1996, dividiu espaço no CD Dose Dupla - e, muito particularmente, o goiano Marcus Biancardini, a quem, em suas últimas apresentações, apresentou como seu legítimo sucessor.
No espetáculo 'Viola enfeitiçada' - exibido pela TV Câmara em 2001 - confessou, rindo, que, dos grandes vultos a que aspirava repetir no manejo do violino, calhou de, empunhando a viola, ser 'apenas' o Renato Andrade.
Em 2005, já aos 73 anos de idade, em plena atividade, descobriu um temerário câncer no pulmão. Recolheu-se para gozar do convívio de seus familiares em seus últimos meses. O homem que com sua intrepidez venceu até o Diabo numa disputa de viola - um dos seus muitos causos exóticos -, tombou sobre a terra no dia 30 de dezembro do mesmo ano.
Morto para o mundo físico, seu nome, entretanto, jamais se apagará enquanto resistir a viola caipira e houver admiradores, que, sendo-o verdadeiramente, não podem passar ao lado de suas composições mirabolantes: 'Relógio da fazenda' e 'Seriema do campo', a título de exemplo, tem sido reverenciadas por violeiros da maior estima ao longo das décadas. Renato é génio da raça, vencendo o mundo e o bico de seus irmãos com esse tesouro que não pode ser definido senão como a extensão da alma do caipira.
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