Muita coisa está sendo escrita agora sobre a vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos. Existem poucas análises, no entanto, se é que há alguma, que estejam prestando atenção a um desenrolar notável, a saber, o fim da Era Bush-Clinton. Você pode não ter prestado muita atenção a isso (e bem capaz que nunca tenha ouvido nem falar), mas a Era Bush-Clinton, quer você saiba ou não, começou na década de 1980 e durou até pelo menos 2020. Vamos voltar no tempo, então.
Era assim que funcionava: a partir de 1981, sempre havia ou um Bush ou um Clinton na Casa Branca (seja como um poderoso Vice-Presidente ou como o próprio Presidente da República) e foi assim por muitos anos. E, mais tarde, havia ou um Bush ou um Clinton pelo menos no comando da política externa. Vale lembrar que, de 1981 a 1898, George H. W. Bush, do Partido Republicano, também conhecido como George Bush Sênior (ou "Bush Pai"), foi o vice-presidente de Ronald Reagan. Sendo um ex-diretor da poderosa Agência Central de Inteligência (a CIA), faz todo sentido descrever Bush Pai como um Vice-Presidente poderoso - e muito. Como patriarca fundador de toda uma Era, ele merece um olhar mais atento nosso.
Aqueles eram os anos da Guerra Fria, e a CIA era coisa séria (segue sendo, é claro). Com o seu Centro de Atividades Especiais ("Special Activities Center"), a divisão encarregada tanto da ação política clandestina (conduzida pelo PAG – Grupo de Ação Política) quanto das chamadas operações clandestinas e paramilitares (realizadas pelo Special Operations Group ou SOG – Grupo de Operações Especiais), além de outros departamentos, a Agência é bem conhecida por:
dar treinamento ensinar técnicas de tortura a grupos estrangeiros;
promover "mudanças de regime" (um código para golpe de estado no exterior);
ataques terroristas de bandeira falsa ("false flag operations");
assassinatos de líderes estrangeiros etc etc.
Não seria exagero nenhum descrever a CIA como uma das organizações mais perigosas do mundo. Durante os anos de Regan, fazendo a jus a todo esse histórico e curriculum, Bush Pai admitiu ter desempenhado um papel no chamado escândalo Irã-Contra, que dizia respeito à venda ilegal de armas ao Irã e, em seguida, o uso clandestino dessa venda de armas para financiar o grupo rebelde anticomunista da Nicarágua conhecido como os Contras. Os Contras estavam envolvidos em esquadrões da morte, tráfico de cocaína, terrorismo e tortura. Pior ainda: a CIA foi acusada de ter envolvimento nas operações de narcotráfico dos Contras.
De acordo com o diplomata Peter Dale Scott, o historiador Alfred McCoy, e os jornalistas Gary Webb e Alexander Cockburn, tudo isso está de acordo com um longo histórico de envolvimento da CIA no tráfico de drogas. Voltando ao caso Irã-Contra: na época, um agente da CIA chamado Barry Seal participou das operações que movimentaram o equivalente a pelo menos três bilhões de dólares em cocaína.
Toda essa droga entrou nos EUA através do Aeroporto Mena (Estado de Arkansas). É aqui que Bush Pai e Clinton (do Partido Democrata) se encontram: enquanto Bush fazia parte do governo que comandava o Irã-Contra, Bill Clinton, que mais tarde se tornou presidente, era o então governador do Arkansas e foi acusado de ser cúmplice desse esquema. Essa não é a única suposta conexão que Clinton tem com o mundo do crime organizado, a propósito: seu irmão Roger Clinton tinha laços com a "família" Gambino da Máfia Italiana; Roger Clinton chegou a cumpriu pena por tráfico de cocaína - apenas para mais tarde receber um indulto (anistia ou perdão presidencial) assinado pelo então presidente Bill Clinton.
O repórter do San Jose Mercury News, Gary Webb, é um dos jornalistas que tentou cobrir o escândalo: ele foi alvo de uma campanha difamatória implacável para assinar a reputação dele e, anos depois, foi encontrado morto em casa com nada menos que dois ferimentos de bala na cabeça, o que foi considerado suspeito - a morte, de qualquer forma, foi declarada um suicídio. É raro, mas acontece.
Voltando a Bush Sênior, ele era um Vice-Presidente tão poderoso que, quando o ex-membro do Partido Nazista Americano John Hinckley Jr. atirou no Presidente Reagan em 30 de março de 1981, ferindo-o em uma tentativa de assassinato, surgiram boatos e teorias da conspiração sobre Bush estar envolvido no ataque para assim ascender à Presidência. Em se tratando de tais boatos, o fato da família Hincley ter conexões com a família Bush não ajudou: por um lado, o irmão do atirador (Scott Hinckley, vice-presidente da empresa da família Vanderbilt Energy Corp) era amigo do filho de George Bush (Neil Bush). Scott Hincley estava inclusive convidado para um jantar na casa de Neil Bush antes do incidente. O mundo é pequeno.
George Herbert Walker Bush não se tornou Presidente em março de 1981, mas o fez em 1989, sucedendo Reagan. Um de seus maiores legados, por assim dizer, é a primeira Guerra do Golfo. Como Presidente, ele não conseguiu se reeleger para um segundo mandato e foi sucedido, em 1993, por alguém muito próximo a ele, alguém que ele considerava como um filho, o já mencionado democrata Bill Clinton. Novamente, é um mundo pequeno. Tal foi a ascensão dos chamados Novos Democratas (New Democrats). Para o governo de Clinton, destaco duas grandes conquistas: impulsionar a expansão da OTAN (a Organização do Tratarado do Atlântico Norte) e fazer a OTAN bombardear um país europeu que então deixou de existir (o antigo estado da Iugoslávia). A região é uma bomba-relógio até hoje.
A conexão familiar permaneceu forte - existe uma série de iniciativas Clinton-Bush, como, por exemplo, o Clinton Bush Haiti Fund e o Bush-Clinton Katrina Fund. Não é de se admirar que os Bush e os Clinton sejam tão próximos - eles se revezaram governando o país por décadas, afinal. O presidente Clinton, precedido por Bush Sênior (a quem ele chamava de "pai"), foi sucedido, em 2001, por ninguém menos que o republicano George W. Bush, ou seja, o filho de Bush. George W. Bush costuma chamar Clinton de seu "irmão". Vieram então os anos dos chamados neocons ou neoconservadores. Os legados de Bush Filho incluem a transformação dos EUA em uma ditadura de fato com o Patriot Act e a invasão e ocupação de duas décadas do Afeganistão e do Iraque (sendo a segunda uma clara empreitada neocolonial), além de ainda mais expansão da OTAN.
Eis aí, então, a Era Bush-Clinton. Essa situação durou pelo menos 28 anos, ou seja, até 2009, quando Hillary Clinton (ninguém menos que a esposa do ex-presidente) não conseguiu se fazer a candidata nomeada pelo Partido Democrata e, em uma luta interna feroz, Barack Obama obteve a nomeação e venceu a eleição presidencial em 2009. Mas este ainda não é o fim da era Bush-Clinton. Obama ainda manteve uma Clinton (Hillary, ela mesma) no comando da política externa, como Secretária de Estado até 2013. Ela renunciou após alguns escândalos e foi substituída por John Kerry, do Partido Democrata. Kery, vale lembrar, é um companheiro "bonesman" de George W. Bush (ambos são "irmãos" membros da mesma sociedade secreta de elite "Skull and Bones"). Kerry foi derrotado pelo seu frater Bush na eleição de 2002 - mundo pequeno, mais uma vez. Eis aí a democracia americana, onde, em tese, "qualquer um pode se tornar Presidente", Vice-Presidente ou pelo menos Secretário de Estado - desde que seja membro da família Bush ou Clinton ou iniciado na mesma fraternidade esotérica que um Bush ou um Clinton.
Os candidatos Bush e Kerry respondendo perguntas sobre a influente sociedade secreta Skull and Bones, quando entrevistados, em 2004, pelo jornalista e apresentador de TV Tim Russert: "é tão secreto que não posso comentar".
Embora Obama tenha sido considerado o presidente "menos atlantista", o legado de Obama-Clinton-Kerry inclui:
colocar lenha na fogueira na guerra civil síria quase destruindo o país;
a destruição da Líbia pelos bombardeios da OTAN - e, novamente, mais expansão da OTAN.
Então, algo impressionante aconteceu: Hillary Clinton, desta vez candidata nomeada, perdeu a corrida presidencial para o republicano Donald Trump, em 2016. Isso aparentemente encerra a Era Bush-Clinton. Trump governou por quatro anos foi então derrotado pelo democrata Joe Biden (com sua vice Kamala Harris) em 2020 e, à época, Trump foi considerado morto politicamente. Longe de ser o fim de sua carreira política, ele, operando nos bastidores, tomou por dentro o controle do Partido Republicano, deixando parcialmente de lado tanto os Bushes quanto os neocons. Já os Clintons não voltaram à cena com Biden por uma série de razões. O legado da presidência de Joe Biden-Kamala Harris, em qualquer caso, inclui cumplicidade com o genocídio israelense na Palestina e brincar com o risco de uma guerra mundial aumentando as tensões com a Rússia e a China (na questão de Taiwan). Como dizia o slogan do governo de Biden "A América está de volta!"
Agora Trump está de volta, o que joga a pá de cal definitiva na Era Bush-Clinton - e desta vez com controle total do partido Republicano, com maioria no Senado e muito mais. Ele não venceu só Kamala Harris, mas as famílias Bush e Clinton. Trump, como escrevi, não é de forma alguma um "pacificador" e não é bem verdade que sua presidência de 2016-2020 tenha sido marcada pela "ausência de guerras". Entre outras coisas, ele assassinou o general iraniano Soleimani e facilitou os Abraham Accords, que estão na raiz da crise atual no Oriente Médio de muitas maneiras diferentes. Seja como for, o governo anterior de Trump certamente não foi páreo para seus predecessores Bush-Clinton em termos de belicismo, genocídio e destruição de nações - e não foi páreo para Biden nesse quesito, tampouco. Tudo indica que, desta vez, ele também não estará à altura de todo o legado de seus precursores acima mencionado. Se for esse o caso, e se conseguir exercer uma política externa minimamente mais contida e aquém dos predecessores, isso por si só já deve ser uma boa nova para o mundo. A Era Bush-Clinton acabou. Amém.
Traduzido e adaptado, pelo próprio autor, de "Trump’s victory seals the coffin of “Bush-Clinton era” which lasted three decades", (o autor escreveu uma versão mais curta deste artigo originalmente em inglês)
Uriel Araujo, PhD (antropologia) é um pesquisador com foco em conflitos internacionais e étnicos
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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