Um dos debates que mais marcam a constituição e expansão do Ocidente diz respeito à herança do Império Romano. As civilizações cristãs sempre se perceberam como uma continuidade do antigo Império e da unificação que ele realizou de todo o caldo de cultura e de povos mediterrâneos. O continuador mais óbvio da Roma Imperial é o chamado Império Romano ''do Oriente'' que os ocidentais se acostumaram a chamar de "bizantino". É muito parcial dizer que o Império Romano caiu no fim do século V. Esta é a queda somente do Império Romano do Ocidente.
Na verdade, os contemporâneos reconheciam Constantinopla e seus territórios como romanos. Quando o Santo Imperador Justiniano impulsionou, no século VI, a Restauratio Imperii e avançou sobre territórios invadidos pelas tribos germânicas na Itália, no Norte da África e na Península Ibérica, as populações romanizadas dessas regiões entendiam que ''os romanos estavam voltando". E muitas delas se apoiavam nessa ideia e até conspiravam a favor.
É impossível entender a ação de São Martinho de Tours, de São Leandro de Sevilha, de Santo Isidoro de Sevilha, sem levar em contra esta percepção.
O projeto de recuperação de territórios foi por água abaixo nos séculos VII e VIII por causa do surgimento do Islã. O Império encolheu, e a partir de então passou por um processo interno de eslavização. Surgiram também as pendengas em torno do Império Carolíngeo, que se reivindicava romano. E foi assim que, a partir do século IX, a Cristandade Latina nascente [a chamada civilização medieval] passou a se referir a eles como "gregos'' e ''bizantinos''. Mas não é assim que eles mesmos se viam, e sim como romanos. E eram considerados romanos também pelos seus grandes inimigos, os turcos, que os chamavam de ''rum'' (palavra com a mesma raiz de Roma) e consideravam o trono de Constantinopola como o centro de poder da herança romana.
As justificativas dos medievais para negar a identidade romana do Império são bastante polêmicas e permeadas de interesses políticos. É verdade que a cultura de elite era grega, mas isso era assim também na Antiguidade. A helenização é uma marca óbvia da civilização mediterrânea unificada gradualmente pelos romanos. O poder imperial também existia entre os romanos desde o surgimento da Igreja, e assim permaneceu após a conversão do século IV. O mesmo se pode dizer da legislação, dos símbolos, e do peso da Igreja na vida quotidiana. Se é verdade que os eslavos modificaram bastante a ambiência étnico-cultural dos territórios romanos, o mesmo pode ser dito da Cristandade Latina, que nasceu a partir de uma expansão germânica que alterou sobremaneira os costumes e instituições vigentes nos territórios da Europa ocidental.
Por fim, o Império dito ''bizantino'' era explicitamente mediterrâneo, em continuidade com todo um arcabouço civilizacional que mergulha nas brumas da História. Já a Cristandade latina, segundo a tese clássica de Pirenne, nasce a partir do bloqueio do Mediterrâneo pelos muçulmanos: é uma nova civilização franco-latina centrada no norte da Europa, e cuja certidão de batismo pode ser vista na consolidação dos carolíngeos no início do século IX. A Cristandade Latina que estudamos sob o rótulo de ''Idade Média" é que se trata da ''novidade'' histórica em termos civilizacionais.
A permanência mais óbvia do legado romano entre os medievais se dava na Igreja Católcia Romana, que obviamente não se estendia a territórios orientais, romanos e muçulmanos. Quando do nascimento da Modernidade, entre os séculos XV e XVII, as Monarquias ocidentais se fortaleceram por meio da recuperação do Direito Público Romano, que era usado pela Igreja em sua legitimação do Papado. Não significa, porém, que os ''Absolutismos" [termo cada vez mais fora de moda para os Estados Modernos] eram uma continuação direta da Roma Imperial, e sim que releram parte de seu legado.
O mesmo processo de releitura e reinterpretação aconteceu com a consolidação do mundo iluminista e burguês a partir do século XVIII, mas é muito difícil encará-lo como uma continuação estrita do Império Romano só por causa da influência exercida por importantes conceitos do Direito, não mais tanto do Público e sim do Civil.
Estes mesmos processos ocorriam fora da Europa, marcadamente entre os muçulmanos e russos. Todo mundo queria ser uma reedição de Roma. No caso russo, obviamente, havia mais propriedade para a reivindicação pelo próprio esforço de modelação e legitimação de Moscou realizada pela elite de Constantinopla a partir do século XIII.
Também é possível flagrar influências fortes do Império Romano do Oriente na Síria muçulmana dos séculos VII e VIII, e no movimento renascentista do século XV. Mas também não me parece suficiente para tornar essas civilizações em romanas. Em que sentido, então, seria possível um ''ressurgimento do Império Romano''? Só em um bastante analógico, fazendo referência à unificação mundial, ao universalismo jurídico-político de Roma, capaz de transformar todo o Mediterrâneo no Mare Nostrum.
Só no sentido de imposição de um autoridade ''política'', ideológica, religiosa a todos os povos ''do mundo''. Ou seja, o Império Romano só ressurgirá como farsa, como imitação, como o grotesco.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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