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Atlantismo? Por que Dugin está errado sobre Terra e Mar

Uma liderança duginista publicou texto sobre o Atlantismo, defendendo que o conceito ainda tem um grande poder explicativo para retratar a projeção de poder norte-americano.


De fato, há muita utilidade na ideia abrangente de Poder Marítimo, presente na Geopolítica Clássica, e do qual o Atlantismo é uma aplicação. Convém ressaltar, no entanto, que o geopolítico russo Alexander Dugin cai em uma dicotomia estrita em sua abordagem destes termos, conferindo-lhes um conteúdo "metafísico" e escatológico que leva a contradições difíceis de escapar.



O brasileiro autor da peça citada afirma que, segundo Dugin, "as potências marítimas (como em outras épocas Atenas, Cartago e Grã-Bretanha) são aquelas conduzidas segundo um ethos comerciante. O centro existencial sendo a troca e acumulação de bens, isso possui implicações em outros âmbitos. O método de expansão é a construção de entrepostos comerciais e colônias costeiras, os valores são materialistas, igualitários e individualistas. A instabilidade e a precariedade são positivamente valoradas, de modo que há um impulso pela relativização de todos os tipos de limites, fronteiras e tabus."


Este é de fato o arcabouço em que o pensador russo enquadra sua "filosofia da História", marcada pelo enfrentamento entre talassocracias (potências marítimas) e telurocracias (potências terrestres). Porém, ao fazê-lo, Dugin se desvia de modo maniqueísta dos escritos de Carl Schmitt, intelectual cuja obra só é plenamente compreendida sob o pano de fundo da teologia cristã. Schmitt considerava o Império Romano do Oriente [mais conhecido como "Império Bizantino"] uma civilização do Mar, ao lado de Veneza, e da Atenas e Cartago citadas por nosso autor duginista.


Não custa lembrar que Constantinopla é a Igreja-Mãe da Rússia. Foi através deste Império Talassocrático (do Mar), supostamente de "valores materialistas, igualitários e individualistas", que a Ortodoxia não só chegou na Rus' de Kiev, como se espalhou e desenvolveu por toda a Moscóvia. Se a Rússia pôde se dizer a "Terceira Roma", operando o mito da translatio imperii tão bem quisto por Dugin, é por se considerar na linhagem de uma civilização marítima.


Para Schmitt, o grande perigo não estava no Mar como expressão de valores individualistas ou comerciantes, mas sim na ruptura 'espacial' ocorrida no alvorecer da Modernidade, e que criou condições para a conversão completa ao Mar Aberto, ou seja, aos Oceanos, mais tarde unificados.


É verdade que esta situação permitiu a emergência de um Império Mundial Oceânico capaz de cercar todas as terras. Os desenvolvimentos tecnológicos oitocentistas, no entanto, forneceram possibilidade para que os poderes terrestres também lutassem por um Império Mundial, ponto fundamental da obra de Halford John Mackinder (a luta pelo "Heartland"). Tanto Terra quanto Mar podem cair naquilo que Schmitt chamava de Cesarismo, a reemergência bonapartista de um tipo de poder imperial não cristão. Um Império que não é Katechon, nas palavras do jurista alemão.


Katechon é a figura citada pelo Apóstolo São Paulo como "obstáculo" ao Reinado do Anticristo. Na teologia tradicional e em Schmitt faz referência a uma ideia cristã e providencial de Imperador Romano, função que sempre seria exercido por um personagem ou Estado ao longo da História. Dugin, por sua vez, mobiliza estas ideias de modo fetichizado, alegando que o Katechon é o próprio povo russo, que ele chama de "Trono de Deus", epíteto que os ofícios da Igreja Ortodoxa conferem na verdade à Toda Santa e Pura Theotokos (ou seja, à Santíssima Virgem Maria).


Segundo Dugin,

"Russia, which today enters the final battle against chaos, is in the position of one who fights against the antichrist himself. But how far we are from this high ideal, which the radical nature of the final battle demands. And yet... Russia is the 'prepared throne'. From the outside it may appear to be empty. But it is not. The Russian people and state carry the katechumens. [...] We, the Russians, carry the Throne of the Prepared. And in the history of mankind there is no mission more sacred, more lofty, more sacrificial than to lift Christ, the King of kings, upon our shoulders. As long as there is a Cross on the throne, it is the Russian Cross, Russia is crucified on it, she bleeds her sons and daughters and all this for a reason... We are on the right path to the resurrection of the dead. We will play a key role in this world mystery, because we are the guardians of the throne, the inhabitants of Katechon." [Dugin, Genesis and Empire, 2022 - trecho deste livro está disponível também aqui]

Segue tradução do trecho acima:


“A Rússia, que hoje entra na batalha final contra o caos, está na posição de quem luta contra o próprio anticristo. A Rússia é o 'trono preparado'. Do lado de fora pode parecer estar vazio. Mas não está. O povo e o estado russo carregam os catecúmenos. [...] Nós, os russos, carregamos o Trono dos Preparados. E, na história da humanidade, não há missão mais sagrada, mais elevada, mais sacrificial do que erguer e carregar, nos próprios ombros, Cristo, o Rei dos reis. Enquanto houver uma cruz no trono, ela é a cruz russa; a Rússia é crucificada nele, ela faz sangrar seus filhos e filhas e tudo isso por uma razão... Estamos no caminho certo para a ressurreição dos mortos. Teremos um papel fundamental neste mistério mundial, porque somos os guardiões do trono, os habitantes de Katechon" (Dugin, 2022)

Ocorre, porém, que, para Schmitt, a função de Katechon também foi exercida por Constantinopla, uma potência marítima. E contra um poder terrestre:


"[O Império Romano do Oriente], como poder marítimo, conseguiu aquilo que o poder terrestre de Carlos Magno não foi capaz: atuou como uma muralha, um Katechon, como se diz em grego. Apesar de fraco, suportou por séculos os ataques do Islã, impedindo os árabes de conquistar a Itália inteira. Na ausência [de Constantinopla], a Itália teria se tornado parte do mundo muçulmano, como a África do Norte, e toda a civilização antiga e cristã teria desaparecido." [Schmitt, 1942]

O alemão chega a alegar que o Império Britânico do início do século XIX teria sido um Katechon na busca por equilíbrio global.


A perspectiva de Schmitt sobre a disputa entre Terra e Mar -- que ele pensava ter sido sacudida por outra revolução, a conquista do elemento ar, que também proporciona diversas reflexões interessantes, inclusive do ponto de vista teológico e metafísico -- não era o de um confronto maniqueísta entre o Bem e o Mal, repetido indefinidamente no curso da História. Terra e Mar são representações de dois monstros mitológicos, e como tais poderes da Natureza, aos quais os homens, em sua liberdade, podem escolher aderir. Não há problema intrínseco em nenhum deles, desde que estejam sob égide divina, ou complementados por elementos da Natureza não contemplados nesta dualidade da Geopolítica Clássica.


A tendência maniqueísta de Dugin ao satanizar um dos elementos da Natureza terá repercussões em sua abordagem dos gêneros e em sua noologia, dado o platonismo distorcido do pensador russo, que associa a Talassocracia à mulher e à matéria, e ambas ao caos que deve ser submetido por meio da guerra, como no mito do Kulturkampf. Mas esta é uma contradição para ser tratada em outro lugar.


Nota da Sol da Pátria: a respeito do "platonismo distorcido", confira nosso livro "A Rainha do Meio-Dia: Ensaios sobre cultura brasileira e outros temas"

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