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Foto do escritorFranciele Graebin

Autoajuda, Trabalho e alienação - Parte I




Introdução


O termo autoajuda parece intimamente ligado ao termo “individualidade”. Em um mundo globalizado em que tudo está ao alcance das mãos (assim como ao alcance do dinheiro), torna-se cada vez mais difícil se encontrar como indivíduo; e cada vez mais o indivíduo sente necessidade de obter “sucesso na vida” – tanto na vida financeira quanto na vida familiar, pessoal. Se pensarmos na noção de sujeito cunhada nas obras de Foucault (1995; 2009; 2010), a problemática do “se encontrar como indivíduo” ganha peso, pois o sujeito só é sujeito porque se posiciona perante os acontecimentos que lhe atravessam e é por isso que o sujeito foucaultiano é o sujeito da história e do devir (vir a ser) (Martelli, 2006).


A palavra “individualismo”, desse modo, não é vista “como sinônimo de egoísmo, de egocentrismo” (Martelli, 2006, p. 80), mas sim como a busca do autocentramento que leva o indivíduo a fortalecer sua autoestima a ponto de poder chegar a um “individualismo altruísta” (Martelli, 2006, p. 81).


Pretendo, aqui, mostrar a relação que ocorre entre o mundo da autoajuda e do trabalho. Como citado anteriormente, os indivíduos buscam o sucesso pessoal e financeiro, relação essa que, na maioria das vezes, não há como separar. A autoajuda entra aí como a resposta que alia as necessidades do capital com as necessidades individuais (criadas pelo mundo como está: globalizado de forma capitalista). Para tanto, empregarei a vertente da Análise de Discurso Pêcheutiana que envolve o sujeito e os efeitos de sentido no discurso de autoajuda.


Antunes e Alves (2004), no artigo “As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital”, mostram as mudanças que ocorreram nos últimos tempos no cenário do trabalho - ao contrário do que era previsto, ele não perdeu sua força estruturante na sociedade.


A classe trabalhadora se vê em uma situação mais complexa, muito diferente da vivenciada pelo fordismo e o toyotismo. Porém, é uma classe forte, com poder de estruturar a forma como vemos a sociedade, que é moldada pelo (ou que dá forma ao) capitalismo - assim como pelo mundo do consumo tal como ele se apresenta hoje. Além disso, o trabalho é um elemento vivo, que mede forças com o processo social capitalista, tornando o cotidiano um campo de disputa entre a alienação e a desalienação.


Tais mudanças que ocorreram – e ocorrem – no mundo do trabalho exigem que os sujeitos se adaptem às novas situações, levando-os a refletir sobre suas ações para que possam se reestruturar (Rüdiger, 1996).


Para Rüdiger (1996, p. 13), “a literatura de autoajuda constitui uma das mediações através das quais as pessoas comuns costumam construir um eu de maneira reflexiva, gerenciar os recursos subjetivos e, desse modo, enfrentar os problemas colocados ao indivíduo pela modernidade”. Nesse sentido, o mercado de autoajuda é um mercado de fácil acesso, pois os livros são popularizados de tal forma que as obras chegam com muita facilidade aos leitores. No mais, esses textos não se caracterizam por uma estética sofisticada ou marcada pelo cânone literário; isso significa que são fáceis de serem lidos e, talvez por isso, houve uma massificação desse tipo de literatura, de modo geral.


O que me proponho é: pensar o funcionamento da relação trabalho/autoajuda, fazendo uma análise do livro Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey - que promete trazer o segredo do sucesso na carreira e na vida pessoal: “A interdependência é um valor mais forte que a independência” (Covey, 2006, p. 5). Por meio desta análise, pretendemos demonstrar as transferências e jogos simbólicos que ocorrem entre os sentidos e os sujeitos, conforme afirma Orlandi, “dos quais não temos o controle e nos quais o equívoco – o trabalho da ideologia e do inconsciente – estão largamente presentes” (2007, p. 59).


O personagem Frank T.J. Mackey, "guru" de autoajuda, intepretado por Tom Cruise, no filme Magnolia de 1999, dirigido e roteirizado por Paul Thomas Anderson


Autoajuda para o sucesso empresarial: a fragmentação do sujeito


A literatura de autoajuda configura-se como uma confirmação da senda do capitalismo, uma vez que possui uma ligação entre o “ter” e o “ser” - ou seja, obter sucesso é igual a obter felicidade; realização pessoal significa ter realização profissional. No processo de desalienação, o conhecimento dessa relação é extremamente importante, pois só assim o trabalhador pode ser senhor de sua escolha, realmente livre de qualquer influência que não seja a sua própria vontade de agir. É a conscientização do que se passa à nossa volta que nos dá a capacidade de nos conhecermos realmente, realizando-nos enquanto indivíduos dignos e preparados para viver (e não simplesmente sobreviver) nesse mundo capitalista e globalizado.


Nesse sentido, torna-se importante analisar a literatura de autoajuda empresarial, primeiro porque ela é a literatura mais lida no mundo; segundo, porque analisar seu funcionamento discursivo em relação ao tema do trabalho traz um ganho de pesquisa para a área na qual se insere esta nossa investigação, ou seja, a Análise do Discurso Francesa (ADF) em uma relação de diálogo com as Ciências Sociais.


Podemos observar que a autoajuda é o tipo de literatura que mais “vende” na contemporaneidade. Ela funciona como manual, um guia de como proceder em sociedade. Há orientações de como obter felicidade, amor, harmonia familiar, dinheiro, sucesso no trabalho, etc. Este último, em especial, chama atenção por sua grande adesão no mundo empresarial e na vida dos trabalhadores, tornando-se, portanto, objeto desta nossa investigação aqui.


O trabalho e a autoajuda formaram “uma parceria de sucesso” no mundo capitalista. O mundo dos negócios apropriou-se do vocabulário da autoajuda de tal forma que ficou difícil distinguir seus textos das palestras empresariais (Martelli, 2006). Várias são as causas apontadas para tal fenômeno: desde a fragmentação dos sujeitos pelo mundo globalizado e a alienação dos indivíduos em decorrência do trabalho precarizado até o afastamento do fantasma do desemprego que assola a classe trabalhadora no mundo inteiro.


Em seu livro Autoajuda e Gestão de Negócios: uma parceria de sucesso, Martelli (2006) define o sujeito dos dias em que se vive a mundialização. No capítulo 1, “Um mundo em transição”, vemos as dificuldades que enfrentam os sujeitos para conciliar trabalho, família, lazer, autoestima, reafirmação da personalidade – esta, tão fragmentada – envolta em tantas opções que chega a ser difícil de o indivíduo se definir. A autora define três tipos de indivíduo: “pouco indivíduo”, “muito indivíduo” e “altruísta”.


Os “pouco indivíduos” são aqueles considerados indivíduos por serem livres da tradição, família, religião, mas que não conseguem exercer sua liberdade em plenitude. Essa liberdade existe apenas de forma latente; é uma liberdade em potencial, cerceada pelas condições financeiras em que se encontra o sujeito, que o subjugam à aceitação e conformismo das massas. É o “eu como vítima indefesa das circunstâncias externas” (MARTELLI, 2006, p. 59).


Quanto ao indivíduo “muito indivíduo”, trata-se do sujeito que dita as regras do capitalismo. É um ser egoísta, egocêntrico, desumano, o oposto do “altruísta”. São aqueles que “aprendem os mecanismos de funcionamento do jogo e manipulam as cartas em vantagem própria” (Martelli, 2006, p. 67). São os defensores do “cada um por si, Deus por todos” e do “salve-se quem puder” (Martelli, 2006, p. 68).


O tipo “altruísta” é o que conhece a si mesmo e vive num processo de escolhas pessoais, sem perder de seu foco o outro, o seu próximo. Esse processo de escolhas auxilia na formação de sua autoestima, que se fortalece para que então esse indivíduo possa agir altruisticamente.


Esses três tipos de sujeito não são encontrados “puros” na sociedade. Encontramos o que seria um “misto” dos três, mas cada qual com uma das características mais proeminente (Martelli, 2006). Identificamos na obra Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes os indivíduos “pouco indivíduos” como público alvo, já que estes não possuem condições de transpor os limites da massificação conformista. Já os indivíduos “muito indivíduos”, de certa forma, também têm forte relação com o conteúdo do livro, pois sendo os que ditam as regras do capitalismo, são os mais favorecidos pelos resultados possivelmente obtidos com a disciplinarização dos sujeitos que se sujeitam a interiorizar os 7 hábitos.


Contudo, Covey, na obra em estudo, apregoa o altruísmo, dizendo que devemos dominar a arte do “nós”: “A verdadeira grandeza será alcançada por meio da mente abundante que trabalha de maneira altruísta, com respeito mútuo, visando ao benefício mútuo.” (COVEY, 2006, p. 15).


O trabalho não é a única razão do ser social, e não deve ser fonte exclusiva da existência do homem. A vida humana tem muitas dimensões

A precarização do trabalho


Antunes (2008) nos mostra, em seu artigo Século XXI: Nova era da precarização estrutural do trabalho?, que o trabalho já significou “o ponto de partida para a constituição do ser social” (ANTUNES, 2008, p. 1), ou seja, é o labor consciente que nos torna seres sociais plenos. Nesse sentido, podemos afirmar que não somos abelhas executando um trabalho instintivamente, mas sim seres humanos que o idealizam previamente à sua execução. Fazemos sentido por meio de nosso trabalho, uma vez que o trabalho é central na vida dos sujeitos.


Contudo, o trabalho não é a única razão do ser social, e não deve ser fonte exclusiva da existência do homem. A vida humana tem muitas dimensões, e se o trabalho deixa de ter sua característica de “potencial emancipador, ela deve recusar o trabalho que aliena e infelicita o ser social” (Antunes, 2008, p. 2).


Não é o que acontece hoje com a globalização e a sociedade capitalista que rege nosso modo de viver. O trabalho transformou-se em “mercadoria”. Vendemos nosso potencial de labuta e com ele produzimos mais e valorizamos o capital. É um “trabalho assalariado, alienado, fetichizado” (Antunes, 2008, p. 3). Consideramos aqui a definição de Antunes (2008, p. 8) da classe trabalhadora como sendo aquela que

“compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, a classe-que-vive-do-trabalho e que são despossuídos dos meios de produção”.

Encontramos, inclusive na obra de Covey analisada, sinais desta precarização do trabalho, ainda no prefácio, quando ele se direciona aos leitores e aos problemas que eles possivelmente apresentem, tais como: o medo e a insegurança – as pessoas “temem o futuro. Sentem-se vulneráveis no local de trabalho. Receiam perder o emprego e a capacidade de prover a subsistência da família” (COVEY, 2006, p. 12) – a cultura de competição, a falta de equilíbrio na vida devido ao estresse causado pelo excesso de tecnologia e informação e a ânsia de ser compreendido.


A parte 2 deste texto será publicada logo mais


Texto adaptado - originalmente publicado em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/434



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