(Por ocasião do seu recebimento do título de doutor honoris causa, da Universidade de Salamanca, Espanha) [1]
Caetano começou a cursar filosofia na UFBA em 1963, deixou em 1964; em 1998 foi sagrado doutor honoris causa por essa mesma universidade; pela de Universidade de Rosario, Argentina, em 2014; e, agora, pela de Salamanca, Espanha. A gente sabe que Caetano é um grande compositor pop, com muita arte e muita ideia, como se vê em suas canções, entrevistas, colunas. Mas ele não é apenas isso; tem também, por exemplo, um livro extraordinário, o Verdade Tropical (1997), que bem atesta seu perfil de intelectual filosofante que lida com nossos modos mais gerais de compreensão das coisas, do nosso tempo, do movimento da cultura, da identidade do Brasil, de Modernismo e Antropofagia, de Tropicalismo e Esquerda, enquanto movimentos do pensamento e das artes.
E Caetano faz isso, no livro, de modo muito próprio, por um interessante vai-e-vem dialético-hermenêutico, uma elaboração que pode ser chamada de teoria, ‘gaia teoria’ - que merece ser vista de perto. Vejamos, principalmente por essa obra, o perfil de intelectual de Caetano: Verdade Tropical é livro de memórias, proustiano, mas também de ensaio crítico-cultural. Lembra o Observador, do poeta Drummond, e o Memórias, do antropofágico Oswald; lembra ainda o ensaísmo nacional de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda. O destacado crítico literário Roberto Schwarz (em 2012), para depois criticar Caetano desde uma posição de esquerda convencional, começa por admitirque Verdade é obra de um “intelectual de envergadura”, um “crítico de arte de primeira”, uma “notável inteligência estética”, que trata de “questões culturais sérias,” exibindo “domínio de alto nível sobre matéria estético-política”. Schwarz, marxista uspiano, cujo gosto theodor-adorniano não é amigável à música pop nem ao Tropicalismo (desprovido de ‘síntese’ ou ‘mediação social’), louva ainda o Verdade como obra “de grande qualidade literária”, enquanto Ruy Fausto (2012), filósofo de carteirinha, destaca o “enorme apetite de Caetano pelas coisas do espírito, pela arte, pela teoria”, para depois defendê-lo como melhor problematizador do que Schwarz de questões, também filosóficas, que envolvem a esquerda, sua experiência histórica, suas práticas, liberdade, mercado, Ocidente - questões que Caetano aborda sem alinhamento teórico-ideológico tradicional, e sobre as quais Ruy Fausto tem ele próprio uma relevante reflexão crítica publicada.
Também o jeito de Caetano encarar, descolonizada e poeticamente, nosso caráter nacional é marca distintiva de seu pensamento, marca francamente impopular entre intelectuais teórico-críticos e universitários desde a Ditadura de 64. Uma marca, a nacional, descolonizada, que compartilhava outro valoroso mulato anticolonial de sua Santo Amaro, cidade natal de Caetano: Alberto Guerreiro Ramos, do ISEB, que, para o famoso sociólogo russo-ameriano Pitirim Sorokin (que fundou o Departamento de Sociologia de Harvard), foi um dos grandes da teoria social do séc. XX. Uma marca poetizante que lembra também nosso harvardiano Roberto Mangabeira, teórico social de audiência internacional, filósofo original de feição hegeliano-pragmatista deweyana.
No Verdade, Caetano expressa um encantamento pelo Brasil que não exclui enfatizar as históricas mazelas de um País ao mesmo tempo original, híbrido, “grande demais para que alguém o engula” (2019). Com efeito, Verdade tem algo de “romance de um futuro nacional”, como o que Richard Rorty, filósofo poeticamente pragmatista, narrativo, literário, atribui a Mangabeira, enquanto o aproxima teoricamente de Cornelius Castoriadis. O trotsko-lukacsiano Schwarz, porém, vê aí, no nacionalismo de nosso poeta, um “patriotismo supersticioso”, uma “alegoria cafona”. Enquanto que, para o próprio Caetano, seu mito de um Brasil particular põe-lhe, na verdade, na posição de sonhar para além de inegáveis complicações das realizações históricas do marxismo real, ortodoxo. Nesse sentido, para nosso autor, “as sugestões de Roberto Mangabeira são mais atraentes do que as repetições da esquerda uspiana”, de Schwartz (2012).
A poética de Caetano, em suas canções, tem frequentemente também essa marca nacional, enquanto compreende também as inquietações da subjetividade privada e muitas coisas mais sobre que pensar. De ‘Tropicália’, “retrato em movimento do Brasil” (1968), a ‘Meu Coco’ (2021), a pergunta pelo que somos e podemos ser, a que Caetano responde apesar de tudo otimistamente. Passando por ‘Podres Poderes’ (1984): a “incompetência da América-Catolicá”, os “boçais que somos,” que podemos entretanto “salvar o mundo.” Passando também por ‘Estrangeiro’ (1989), em que o amor, que é sempre cego, vê a Baía da Guanabara, como a Nação, ao mesmo tempo bela e banguela. Passando ainda por ‘Fora da Ordem Mundial’ (1991): o país onde a construção já vira ruína. Passando por ‘Peter Gast’ (1983): a poesia do homem comum, por “Cajuína” (1979), os afetos, a delicadeza, a finitude, passando pela poético-metafísica ‘Oração ao Tempo’ (1979). E passando por ‘Eu sou neguinha?’ (1987): a identidade fluida, miscigenada. Passando finalmente por ‘Livros’ (1997), que podem, por “conceito, enredo ou verso, lançar mundos no mundo” - como faz o Verdade Tropical “desde o fundo escuro do coração solar da América do Sul”. E por muito mais passando.
Depois de tudo, Caetano confirma, “Meu Coco rediz o que venho dizendo ao longo de décadas”, da nossa ‘hibridez’ e ‘mestiçagem’, da favela, do neo-pentecostalismo, do funk, “da força e criatividade disso tudo”, que “você tem que sentir”, que “merece respeito e atenção” (2019). “Briguei muito com essa gente, sempre a mesma briga” - “gente que despreza o país e o povo”, com um desprezo que “irresponsabiliza”. No Verdade, Caetano destaca a brasilidade cosmopolita, criativa, da Bossa Nova, também presente no sincrético Tropicalismo, ambos tão sofisticados e avançados quanto qualquer coisa que o resto do mundo possa oferecer. Poético e afirmativo, Caetano exibe seu entusiasmo moderno-tropicalista por todo criar sofisticado, também material, que põe o design do Caravelle (caravela!), belo avião francês, no nível da arquitetura de Niemayer e das harmonias da Bossa Nova. Graças principalmente a João Gilberto, a música brasileira seria para ele como o idealismo alemão para a Alemanha: suas formas são realização antecipada de um nacional avançado, como também seriam nosso futebol e nosso carnaval, mas igualmente a Embraer.
No campo da política, Caetano, artista e homem comum, não quadro militante ou teórico tradicional, é e sempre será, no Verdade e alhures, um questionador herético e inquieto, mas não tanto: “A luta pela superação da opressão de classe e da humilhação colonialista, imperialista, nunca me abandonou” (2017). Mais do que simplesmente de esquerda, nosso intelectual crítico é um progressista colorido, pois também isso pode ser o Tropicalismo, agora maduro, nada anárquico: um progressismo imaginoso, criador. No Verdade e em suas discussões e entrevistas posteriores, Caetano é, assim, poético e pragmático, não-adorniano, não-foucaultiano, mas gilbertiano, oswaldiano, nietzschiano, sempre afirmativo, artístico, popular, não moralizante. Somos chineses, diz ele, até americanos, de outro tipo, óbvio; o que parece interessar a Caetano na política é, chinesamente, que o gato cace bem ratos, mas também que tenha cor, de Brasil e desse povo, e por aí melhore e alegre, de um jeito livre, nosso, o resto todo do Mundo.
A vereda de pensamento do Verdade Tropical é reiterada vinte anos depois, mas também filosoficamente estendida, na sua nova introdução, de 2017, ao livro: cultura, esquerda, Brasil sempre, agora mais ainda filosofia, constituem sua pauta. A filosofia, como nível onde os outros assuntos vão bater, aparece bem mais que antes, em sua discussão mais geral ou fundamental, agora com menos elaboração, porém mais posição e contraposição. Mesmo que para expressamente prescrever e cobrar uma discussão filosófica brasileira, e com disposição para botar a filosofia nacional em movimento, Caetano se diz aí “leitor de critério frouxo e modesta erudição” - filósofo nacional amador, mas com intuições próprias e sensibilidade contextual, cultural que têm faltado à nossa filosofia acadêmica.
Caetano declara sua “antipatia contra a moda pós-estruturalista” que se estende à academia americana e brasileira (2017), e admite seu repúdio a uma visão “crítica” do país e de sua história basicamente informada por uma perspectiva no fundo norte-americana: “um empobrecimento da questão da formação social brasileira”, “a destruição de tudo que aconteceu com o Brasil” (2019). Na discussão estético-política-filosófica de 2012, nosso Autor já se sentia “mais inclinado a ouvir Mangabeira do que a tantos frankfurtianos” (pré-pragmatistas, entenda-se) e “pós-estruturalistas” (de Levi-Strauss a Foucault), acomunados num pessimismo retrô nada prático, de fim de mundo
Contra o velho ‘comentarismo’ e o novo ‘jargonismo’, neo-francês, da ‘nossa’ filosofia, ele então defende o estilo claro, anglo-saxão ou schopenhaueriano, brasileiro, sem dispensar o pensamento ‘continental’ recente, considerado com alguma simpatia pelo tratamento persuasivo, de Foucault e Deleuze, oferecido pelo nosso simpático filósofo Roberto Machado. Mesmo assim, para Caetano, causticamente, os discípulos desses franceses “repetem cacoetes linguísticos dos mestres [incluindo aí Lacan], para parecerem ter entendido o que escapa a não-iniciados, mas também a muitos deles mesmos” (2017). Caetano declara sua “antipatia contra a moda pós-estruturalista” que se estende à academia americana e brasileira (2017), e admite seu repúdio a uma visão “crítica” do país e de sua história basicamente informada por uma perspectiva no fundo norte-americana: “um empobrecimento da questão da formação social brasileira”, “a destruição de tudo que aconteceu com o Brasil” (2019). Na discussão estético-política-filosófica de 2012, nosso Autor já se sentia “mais inclinado a ouvir Mangabeira do que a tantos frankfurtianos” (pré-pragmatistas, entenda-se) e “pós-estruturalistas” (de Levi-Strauss a Foucault), acomunados num pessimismo retrô nada prático, de fim de mundo. “Gosto mais do Esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento (de Adorno e Horkheimer) que tanto obscurece” - como em Adorno, que “iguala a vida americana ao Terceiro-Reich.”
Por conclusão, para a Introdução de 2017 ao Verdade Tropical, depois de formular suas preferências sem querer cancelar ninguém, nossos dilemas filosóficos girariam, nos termos da informação que Caetano tem ou prefere, em torno da oposição entre um progressismo hiperiluminsta, hipercartesiano de Antônio Cícero, e o anti-modernismo ‘irracionalista’ de Heidegger, dos neo-franceses, do antropólogo Viveiros de Castro como “desdobrador” de Lévi-Strauss e Deleuze, nos Trópicos. Por aí, o autor de Verdade Tropical conclui sua multifacetada via de mobilização para a filosofia e o pensamento brasileiros. Em diálogo com ela e com a ‘gaia teoria tropical’ de Caetano, tenho eu próprio oferecido um mapa da filosofia crítica atual, que também quer contribuir para uma pauta para a comunidade filosófica brasileira, como, por exemplo, numa longa entrevista a Linda Alcoff e Gregory Pappas para o Inter-American Journal of Philosophy. Nela tratando de questionar também - disso acho que Caetano Veloso e Oswald de Andrade gostariam - os rumos e pautas da própria filosofia metropolitana, norte-atlântica. Numa perspectiva brasileira.
O autor, J. Crisóstomo de Souza, é filósofo, graduado em filosofia na UFBA, doutorado pela Unicamp, com pós-doutorados nos EUA e na Alemanha, e publicações no Brasil e no Exterior sobre hegelianismo, pragmatismo, Marx, filosofia brasileira, e sobre seu próprio ponto de vista filosófico materialista prático-produtivo, desenvolvido em associação com outros parceiros “poético-pragmáticos”.
[1] Uma versão anterior desse texto foi publicada na Coluna Anpof em 2022.
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