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Foto do escritorMaurício S. Oltramari

Comentário ao filme Cartesius (Rossellini)

Dirigido pelo italiano Roberto Rossellini, Cartesius (1974) é um filme de ficção histórica que retrata a vida do filósofo René Descartes. Dividido em duas partes, o longa narra os episódios mais importantes da vida do filósofo francês desde sua época como estudante em La Fléche, colégio jesuíta de grande prestígio à época, até a publicação de suas obras mais importantes e a repercussão que estas tiveram no ambiente intelectual europeu do século XVII.

René Descartes (Ugo Cardea)

Nas cenas iniciais do filme acompanhamos as indagações e discussões intelectuais que marcaram a juventude de Descartes. Os diálogos do filósofo com seus colegas e mestres no colégio La Fléche transbordam o entusiasmo e as polêmicas crescentes movidos pelas novas hipóteses, teorias e experimentos científicos no campo da astronomia, física e matemática que estavam surgindo. Galileu está ao centro dos debates.


As animadas discussões do ambiente escolar parecem, entretanto, sempre acompanhadas da tensão entre esse nascente pensamento científico que se pensa autônomo e a tradição estabelecida dos cânones da Igreja Católica. O conflito entre uma “razão autônoma” versus fé e tradição (e superstição, nalguns casos) se estende ao longo de todo o filme — é o leitmotiv que guia a obra de Rossellini.


Em La Flèche

Descartes é retratado sobretudo como um símbolo — a estrutura de sua trajetória representa simbolicamente um momento de transição para uma nova mentalidade (a grande questão é: transição de quem?). Em outra perspectiva, percebemos que os episódios mais importantes do drama envolvendo o filósofo francês estão estruturados segundo a narrativa mítica da jornada do herói.


Nesse percurso, o protagonista encarna um certo espírito inquieto em busca por autonomia e “libertação” da tutela do pensamento religioso estabelecido — tanto ao nível pessoal quanto no âmbito intelectual. O francês reivindica uma forma de conhecimento que possa ser verificada através da experiência e ordenada enquanto método segundo uma ordem perfeita — a ordem das razões, que deve espelhar a perfeição e exatidão do conhecimento matemático. Entre outros episódios, são narradas as viagens de Descartes pela Europa, o diálogo com outras figuras importantes do pensamento europeu e o serviço prestado no exército holandês de Maurício de Nassau. Recordamos a este propósito uma conhecida passagem em Discurso do Método:


“[…] tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras. E, decidindo não buscar mais outra ciência senão a que se poderia achar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, em frequentar pessoas de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em provar-me a mim mesmo nos encontros em que a fortuna me propunha, e em toda a parte refletir sobre as coisas que se apresentassem de tal modo a tirar delas algum proveito.” [1]

Na França, em diálogo com seus compatriotas, Descartes comprova o clima de insatisfação dos intelectuais com a censura no ambiente acadêmico, com a Igreja Católica e com a monarquia francesa. Percebemos nessa e noutras cenas ao longo do filme o afã por “liberdade intelectual” que habitava os salões da burguesia francesa; a insatisfação com os ensinamentos incontestados da tradição escolástica sustentados na obra de Platão e Aristóteles. Ganha ênfase uma crítica à epistemologia e práxis científica amparada nos argumentos desses filósofos, considerados ultrapassados, frágeis e contestados pelos estudos de Galileu, Bacon e outros intelectuais europeus.* Nesse contexto, o filme se esforça por transmitir um clima de inquisição e repressão gerado pelas autoridades da Igreja Católica na França do século XVII.


Na casa de Isaac Beeckman, o diálogo entre o matemático holandês e Descartes evidencia a recusa do pensamento moderno à cosmovisão escolástica fundada na filosofia grega: os fenômenos da natureza devem ser estudados através de métodos empíricos, isso é, através da experimentação e teste de hipóteses amparados numa racionalidade empirista, só assim a mente deve ser capaz de fundar conhecimentos “seguros e verdadeiros”. A cosmovisão holística e, portanto, profundamente espiritual que se tinha do universo e sua concepção da natureza devem ser rejeitadas em favor de um conhecimento “claro e distinto”.


Até o final da película continuamos acompanhando as viagens e diálogos do protagonista e a defesa de argumentos centrais em seu pensamento filosófico: a concepção do cogito; penso, logo existo; sou uma coisa pensante, a separação entre corpo (res extensa) e alma (res cogitans), a leitura mecanicista da natureza e do corpo humano (máquina perfeita), a formulação do método da ordem das razões — em analogia à ordem natural dos números da matemática, a concepção de Deus como substância infinita e, por outro lado, as primeiras críticas e impugnações que recebeu a filosofia cartesiana.



Não obstante, embora desnecessário discorrer sobre o impacto e a importância do cartesianismo para o surgimento da metafísica da consciência e para as fases posteriores do pensamento ocidental, é importante compreender que o surgimento da racionalidade moderna representa o desdobramento de um contexto histórico e cultural específicos. Contexto este, à época, distante das realidades sociais, históricas e culturais de outras grandes ecúmenes como a Eurásia, o Oriente Próximo ou mesmo a América Ibérica.


Por fim, cabem ainda alguns comentários. É curiosa a maneira como Rossellini apresenta Helena, a criada com quem Descartes teve uma filha de nome Francine. Helena nos lembra, por sua teimosia e espírito argumentativo, a figura de Xântipa, esposa de Sócrates, retratada nos relatos de Xenofonte, Antístenes e Diógenes Laércio como uma mulher de temperamento irascível e de difícil trato.


Com diálogos, roteiro e cenografia muito bem construídos e orquestrados, é incontestável que a síntese quase poética da vida e obra de Descartes produzida por Rossellini se inscreve no rol das grandes biografias do filósofo francês. Em Cartesius, Rossellini foi capaz de apresentar a trajetória daquele que inaugurou o pensamento moderno com a peculiar sensibilidade artística e detalhamento que dão destaque à sua obra cinematográfica.


*Convém recordar, não obstante, que a filosofia antiga é herdeira, por transmissão direta, do conhecimento tradicional das ciências sagradas e dos mitos, cujos pressupostos metafísicos, símbolos e conceitos operam num nível diferente daquele do pensamento científico materialista e empirista que surgiu na modernidade.


Referências:

[1] DESCARTES, René. Discurso do Método; tradução de Paulo Neves. 1. Ed. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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