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"Comerciante, Guerreiro e Sábio" - as "castas" e os Tradicionalistas

Alguns escritores, como Teitelbaum, frisam que os Tradicionalistas (ou ainda os Perenialistas) mobilizam o conceito de castas em sua compreensão da sociedade e das relações de poder. O que podemos dizer sobre este tópico do Tradicionalismo? Será que ele implicaria no estabelecimento de um ordenamento jurídico rígido com a intenção de sustar a mobilidade social?



Para começar, as varnas não devem ser confundidas com o “sistema de castas” indiano [Jati]. Este último é específico à Índia, enquanto as varnas seriam disposições inerentes aos seres humanos segundo as quais é possível classificá-los em quatro grupo principais de “vocações”.


Tais disposições teriam uma base ontológica: elas surgem de articulações e tensões que ocorrem em cada indivíduo entre os três principais ‘vetores’ da Matéria Primordial (que forma todos os seres do mundo), ou, em terminologia hindu, entre as três gunas de Prakriti.


Aqueles em quem predomina o ‘vetor’ Sattva (ou seja, a varna dos brâmanes), ou luminoso, seriam dotados de uma direção ascendente, e de maior facilidade para a compreensão dos Universais e sua transmissão para os demais. Estão, assim, vocacionados às funções intelectuais (no sentido não apenas racional, mas de gnose, ou seja, de contemplação espiritual): são professores, mestres, sacerdotes etc. Para o tradicionalista René Guénon, eles não exercem o governo, mas sim são a mais elevada autoridade de uma civilização ‘normal’ ou tradicional.


Depois, temos aqueles em quem predomina o vetor Rajas, de expansão horizontal nos diferentes aspectos do mundo. São os Ksatryias ou xátrias, vocacionados para o governo, a manutenção da ordem social e a defesa. É daqui que sai a aristocracia e a Realeza, e também os juízes e militares, além de outras funções de ordem administrativa e política. Este grupo exerce o poder temporal propriamente dito.


Abaixo, temos os homens em quem predomina uma mescla de Rajas e Tamas, os Vayshas ou vaixá. Estão vocacionados para a produção material e o domínio da ordem econômica: comerciantes, agricultores, artesãos, e todos os que apresentam tendência ao exercício da técnica aplicada à geração de riqueza.


Por fim, aqueles em que predomina Tamas, e de direção descendente, os Sudras ou Shudras. São aprisionados pelas paixões mais baixas e pela gratificação dos próprios sentidos. Em uma civilização ‘normal’ (tradicional) teriam de se ocupar dos serviços mais baixos.


As varnas seriam expressões substanciais do ser humano, e as sociedades mais complexas tendem a seguir suas divisões mesmo que não a instituam em algum tipo sistema jurídico [como, por exemplo, o sistema de castas propriamente dito]. Mas, de acordo com as condições cíclicas que imperem em uma civilização ou no mundo em geral, as funções sociais podem ser ocupadas por pessoas sem disposição ou vocação real para exercê-las. Teríamos, assim, militares ou governantes que não são ksatryias, professores e intelectuais que não são brâmanes.


Além disso, a sociedade é orientada por um dos tipos ideais que correspondem às diferentes varnas. Ela pode estar organizada segundo os ‘valores’ e ‘objetivos’ dos brâmanes, dos ksatryias, dos vayshas ou dos sudras. Ou seja, uma sociedade pode ter por eixo o conhecimento em sua acepção maior, a expansão temporal, a expansão econômica ou ainda a pura gratificação dos sentidos e dos instintos.


A sucessão de Eras e a decadência a ela associada pode ser entendida também como um "Retrocesso das Castas", cuja origem está em uma quebra do princípio hierárquico descrito acima. Para Guénon, essa ruptura se dá, originalmente, por uma rebelião dos ksatryias contra a autoridade espiritual dos brâmanes.


As três primeiras varnas portariam “qualificações iniciáticas”, ou seja, podem efetivamente ser introduzidos ao esoterismo. Por estarem presos nas paixões corporais mais grosseiras, os sudras se limitariam à ordem exotérica [apenas externa e não esotérica, "interna"] Cada varna teria uma via espiritual mais condizente com suas disposições. Para simplificar a questão, Guénon associava os Ksatryias aos Pequenos Mistérios, mais vinculados a práticas espirituais de tipo bakthi, de teor devocional, ou seja, que partem de aspecto passionais da pessoa. Já os Brâmanes estariam associados aos Grandes Mistérios e a práticas de tipo jñani, ou de pura contemplação (gnose). [1]


Já que as disposições psíquicas se expressam em atividades sociais, e se tornam a base de grupos funcionais e econômicos, os autores Tradicionalistas acabam mobilizando o conceito de varnas como chave de entendimento do conflito social. E não são os únicos. David Priestland, professor de História Moderna da Universidade de Oxford, apresentou teoria similar na obra "Uma nova História do Poder: Comerciante, Guerreiro e Sábio".


Com um arcabouço teórico marxista-weberiano, fundamentado em Michael Mann, Pierre Bourdieu, Charles Tilly e Herbert P. Kitschelt, Priestland sustenta o valor analítico do conceito de "casta" (no caso, varna) e das disputas entre esses grupos para explicar as formações políticas e o desenvolvimento do mundo contemporâneo. É um livro instigante para os que desejam uma abordagem criativa e ao mesmo tempo consistente das relações de poder.



[1] Não há espaço aqui para tratar dos aspectos de uma Antropologia e de uma Psicologia Tradicionalista. Mas há uma correspondência analógica entre a constituição do ser humano em sua estrutura psicossomática, e o Cosmos ou o Homem Universal. Há também uma analogia entre ambos e a Ordem Social. Para uma abordagem acadêmica, vide "Homo Hiearchicus: o sistema de castas e suas implicações", do antropólogo Louis Dumont, em que são tratadas as diferenças entre as sociedades holistas [tradicionais] e as individualistas [modernas].

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