Segue abaixo uma seleção de trechos da obra clássica Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (vide nossa coletânea de ensaios sobre a obra aqui). Para além de sensos comuns sobre o livro, leituras equivocadas e distorções, salta aos olhos a sensibilidade de um autor consciente acerca dos horrores da escravidão, cujo sadismo descreve bem. Para além de questões terminológicas e conceituais relacionadas ao contexto histórico de um livro escrito em em 1933 - questões que o(a) leitor(a) atento(a) manterá em mente - e, portanto, escrito num momento em que o chamado “racismo científico” era ainda hegemônico no Brasil, os trechos selecionados fornecem uma amostra do quanto esta obra antirracista permanece atual e uma leitura enriquecedora a respeito da imensa contribuição negra/africana/mulata para a construção do Brasil. Freyre, em um movimento de antítese, chega a dizer que os africanos escravizados e trazidos às terras brasileiras “desempenharam uma função civilizatória” (nisso lembra Fernando Pessoa falando sobre os árabes em Portugal), com “superioridade técnica” no “trabalho de metais” e na “criação de gado”, entre outras contribuições - e segue mapeando trânsitos atlânticos entre África e Américas, com destaque inclusive para a influência do Islã, no tocante à língua, alimentação, narração de histórias e afetos.
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"Os escravos (...) foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.
E não só da formação agrária. Eschwege salienta que a mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. E Max Schmidt destaca dois aspectos da colonização africana que deixam entrever superioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco: o trabalho de metais e a criação de gado. Poderia acrescentar-se um terceiro: a culinária, que no Brasil enriqueceu-se e refinou-se com a contribuição africana.
Schmidt observou em Mato Grosso que muitas das práticas ligadas à criação de gado eram de origem africana. Também os instrumentos de ferreiro. Teriam sido transmitidas aos mestiços de índios com brancos pelos escravos negros. E Roquette-Pinto fixou interessante caso, que já referimos, da ação civilizadora dos escravos fugidos entre os índios da serra dos Pareci. (...) Diante dos caboclos os negros foram elemento europeizante. Agentes de ligação com os portugueses. Com a Igreja. Exerceram não só aquele papel de mediadores plásticos entre os europeus e indígenas a que se refere José Maria dos Santos, mas, em alguns casos, função original e criadora, transmitindo à sociedade em formação elementos valiosos de cultura ou técnica africana.
(...) O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África "donas de casa" para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos. Por outro lado a proximidade da Bahia e de Pernambuco da costa da África atuou no sentido de dar às relações entre o Brasil e o continente negro um caráter todo especial de intimidade. Uma intimidade mais fraternal que com as colônias inglesas.
(...)
Forçosamente o catolicismo no Brasil haveria de impregnar-se dessa influência maometana como se impregnou da animista e fetichista, dos indígenas e dos negros menos cultos. Encontramos traços de influência maometana nos papéis com oração para livrar o corpo da morte e a casa dos ladrões e dos malfeitores; papéis que ainda se costumam atar ao pescoço das pessoas ou grudar às portas e janelas das casas, no interior do Brasil. E é possível que certa predisposição de negros e mestiços para o protestantismo, inimigo da missa, dos santos, dos rosários com a cruz, se explique pela persistência de remotos preconceitos anticatólicos, de origem maometana. Melo Morais Filho descreve uma Festa dos Mortos, em Penedo (Alagoas), que para Nina Rodrigues é, sem dúvida nenhuma, muçulmana. Longas rezas e jejuns. Abstinência de bebidas alcoólicas. Relação da festa com as fases da Lua. Sacrifício de carneiro. A vestimenta, umas longas túnicas alvas.
Em nossas observações de práticas e ritos de seitas africanas em Pernambuco temos várias vezes notado o fato dos devotos tirarem as botinas ou os chinelos antes de participarem das cerimônias; e em um terreiro que visitamos no Rio de Janeiro notamos a importância atribuída ao fato do indivíduo estar ou não pisando sobre velha esteira estendida no meio da sala. No centro da esteira, de pernas muçulmanamente cruzadas, o negro velho, pai-de-terreiro. Junto dele um alguidar com a comida sagrada - toda picada dentro de sangue de galinha preta. Nas festas das seitas africanas que conhecemos no Recife - na dirigida por Elói, rapaz quase branco, de seus dezessete anos, criado por negras velhas, e na de Anselmo, negro de seus cinqüenta anos, filho de africanos, que vai, freqüentemente, à Bahia "no interesse da religião" - temos observado o fato de dançarem as mulheres com uma faixa de pano amarelo em volta do pescoço. Exatamente como nos jejuns maometanos da Bahia, que Manuel Querino descreve, celebrados na mesma semana das festas que a Igreja dedica ao Espírito Santo.
(...) O catolicismo das casas-grandes aqui se enriqueceu de influências muçulmanas contra as quais tão impotente foi o padre-capelão quanto o padre-mestre contra as corrupções do português pelos dialetos indígenas e africanos. E ponto a que nos havemos de referir com mais vagar, esse da interpenetração de influências de cultura no desenvolvimento do catolicismo brasileiro e da língua nacional. A esta altura apenas queremos salientar a atuação cultural desenvolvida na formação brasileira pelo islamismo, trazido ao Brasil pelos escravos males. (...) Aliás é curioso notar que até fins do século XIX deu-se o repatriamento de haúças e nagôs libertos da Bahia para a África; que geges libertos repatriados fundaram em Ardra uma cidade com o nome de Porto Seguro. Tão íntimas chegaram a ser as relações da Bahia com cidades africanas que chefes de casas comerciais de Salvador receberam distinções honoríficas do governo de Daomé. (...)
Na Bahia, no Rio de Janeiro, no Recife, em Minas, o trajo africano, de influência maometana, permaneceu longo tempo entre os pretos. Principalmente entre as pretas doceiras; e entre as vendedeiras de aluá. Algumas delas amantes de ricos negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e cetim. Cobertas de quimbembeques. De jóias e cordões de ouro.
Figas da Guiné contra o mau-olhado. Objetos de culto fálico. Fieiras de miçangas. Colares de búzios. Argolões de ouro atravessados nas orelhas. Ainda hoje se encontram pelas ruas da Bahia negras de doce com os seus compridos xales de pano-da-costa. Por cima das muitas saias de baixo, de linho alvo, a saia nobre, adamascada, de cores vivas. Os peitos gordos, em pé, parecendo querer pular das rendas do cabeção. Tetéias. Figas. Pulseiras.
Rodilha ou turbante muçulmano. Chinelinha na ponta do pé. Estrelas marinhas de prata. Braceletes de ouro. Nos princípios do século XIX Tollenare, em Pernambuco, admirou a beleza dessas negras quase rainhas. E Mrs. Graham surpreendeu-lhes a graça do talhe e o ritmo do andar. (...)
Goldenweiser salienta quanto é absurdo julgar-se o negro, sua capacidade de trabalho e sua inteligência, através do esforço por ele desenvolvido nas plantações da América sob o regime da escravidão. O negro deve ser julgado pela atividade industrial por ele desenvolvida no ambiente de sua própria cultura, com interesse e entusiasmo pelo trabalho. Do mesmo modo, parece-nos absurdo julgar a moral do negro no Brasil pela sua influência deletéria como escravo. Foi o erro grave que cometeu Nina Rodrigues ao estudar a influência do africano no Brasil: o de não terreconhecido no negro a condição absorvente de escravo. "Abstraindo pois", escreve ele às primeiras páginas do seu trabalho sobre a raça negra na América portuguesa, "da condição de escravos em que os negros foram introduzidos no Brasil e apreciando as suas qualidades de colonos como faríamos com os que de qualquer outra procedência etc." Mas isto é impossível. Impossível a separação do negro, introduzido no Brasil, de sua condição de escravo. Se há hábito que faça o monge é o do escravo; e o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola de malê para vir de tanga, nos [navios] negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de tigre. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.
Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos negros da África (..) é maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se necessita de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico. Orgias. Enquanto no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações. Sem esforço. A idéia vulgar de que a raça negra é chegada, mais do que as outras, a excessos sexuais, atribui-a Ernest Crawley ao fato do temperamento expansivo dos negros e do caráter orgiástico de suas festas criarem a ilusão de desbragado erotismo. (...)
Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia. (...)
É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu em um manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão ricas de significação: "a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador".
Fora assim em Portugal, de onde a instituição se comunicou ao Brasil, já opulenta de vícios. "Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o batismo, não recebiam depois a mínima educação religiosa", informa Alexandre Herculano. Entre esses escravos os senhores favoreciam a dissolução para "aumentarem o número de crias como quem promove o acréscimo de um rebanho." Dentro de semelhante atmosfera moral, criada pelo interesse econômico dos senhores, como esperar que a escravidão - fosse o escravo mouro, negro, índio ou malaio - atuasse senão no sentido da dissolução, da libidinagem, da luxúria? O que se queria era que os ventres das mulheres gerassem. Que as negras produzissem moleques.
Joaquim Nabuco salientou "a ação de doenças africanas sobre a constituição física do nosso povo." Teria sido esta uma das terríveis influências do contágio do Brasil com a África. Mas é preciso notar que o negro se sifilizou no Brasil. Um ou outro viria já contaminado. A contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais. A "raça inferior", a que se atribui tudo que é handicap no brasileiro, adquiriu da "superior" o grande mal venéreo que desde os primeiros tempos colonização nos degrada e diminui. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O Dr. João Alvares de Azevedo Macedo Júnior registrou, em 1869, o estranho costume, vindo, ao que parece, dos tempos coloniais: e de que ainda se encontram traços nas áreas pernambucana e fluminense dos velhos engenhos de açúcar. Segundo o Dr. Macedo seriam os blenorrágicos que o "bárbaro prejuízo" considerava curados se conseguissem intercurso com mulher púbere: "a inoculação deste vírus em uma mulher púbere é o meio seguro de o extinguir em si".
É igualmente de supor que muita mãe negra, ama-de-leite, tenha sido contaminada pelo menino de peito, alastrando-se também por esse meio, da casa-grande à senzala, a mancha da sífilis. Já o Dr. José de Góis e Siqueira, em estudo publicado em 1877, julgava que se deviam sujeitar a multas e indenizações aqueles que, sem escrúpulo, entregavam os filhos sifilíticos aos cuidados de amas em perfeita saúde. (...)
É claro que, sifilizadas - muitas vezes ainda impúberes - pelos brancos seus senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, grandes transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão. O mesmo se verificou no sul dos Estados Unidos (...)
A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue envenenado rebentava em feridas. Coçavam-se então as perebas ou "cabidelas", tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. A sifilização do Brasil - admitida sua origem extra-americana - vimos, às primeiras páginas deste trabalho, que data dos princípios do século XVI. Mas no ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias, negrinhas, molecas, mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da prostituição doméstica - sempre menos higiênica que a dos bordéis. (...)
O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser impossível - insistamos neste ponto - separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se, assim, o africano um decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por "inferioridade de raça", gritam então os sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas - as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas - dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado por outros.
Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização portuguesa - colonização, a princípio, de homens quase sem mulher - e no sistema escravocrata de organização agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores todo-poderosos e em escravos passivos é que se devem procurar as causas principais do abuso de negros por brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em geral atribuídas à luxúria africana
(...)
As histórias portuguesas sofreram no Brasil consideráveis modificações na boca das negras velhas ou amas-de-leite. Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias. Os africanos, lembra A. B. Ellis, possuem os seus contistas. "Alguns indivíduos fazem profissão de contar histórias e andam de lugar em lugar recitando contos." Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias. Negras que andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. José Lins do Rego, no seu Menino de engenho, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraíba: contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô.
Por intermédio dessas negras velhas e das amas de menino, histórias africanas, principalmente de bichos - bichos confraternizando com as pessoas, falando como gente, casando-se, banqueteando-se -acrescentaram-se às portuguesas, de Trancoso, contadas aos netinhos pelos avós coloniais - quase todas histórias de madrastas, de príncipes, gigantes, princesas, pequenos-polegares, mouras-encantadas, mouras-tortas (...)
Fonte: Gilberto Freyre. “IV - O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”. In: Casa Grande e Senzala, Global Editora, 48a edição, 2003.
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