De amor e paixões políticas: Israel e a direita
- Uriel Araujo
- há 5 dias
- 11 min de leitura
Uma versão um pouco diferente deste texto foi originalmente publicada na revista Valete, número 19 em setembro de 2024. O texto segue cada vez mais atual.
“Who are you going to believe, me or your own eyes?” (“em que você vai acreditar, em mim, ou nos seus próprios olhos?”), pergunta, pêgo no flagra, o personagem de Groucho Marx, acho, no filme “Duck Soup” de 1933. Se amor e fé há, a resposta correta, claro, seria crer na pessoa amada e não nos próprios olhos piscantes, esses glóbulos gelatinosos tão traiçoeiros, oblíquos e dissimulados. Platão, afinal, já nos alertara a respeito do caráter enganoso do mundo sensível captado pelos nossos sentidos corporais grosseiros e limitados. Em meio à tamanha fantasmagoria demiúrgica, a única bússola segura é o do amor, que sabemos, nunca se engana - e, se se engana, seguramente é porque amor real não era, não.
Existem, com efeito, espelhos que tornam belo o rosto horrendo (quando é caso crônico de auto-amor: acontece). O amor, de fato, faz com que Don Juan e Vadinho (o do Jorge Amado) tornem-se o próprio pai das irmãs Williams. Refiro-me não ao amor que eles sentem (os dois mandriões do exemplo), mas ao amor que nele depositam, paixão que transforma fel em mel e chumbo em ouro. Faz de Nastasya Filippovna uma Amélia, de Tieta uma Maria do Bairro etc etc. Lógica similar aplica-se, com efeito, às paixões políticas, que não são raras e possuem, como o coração, suas próprias razões, ainda que desconhecidas pela Razão mesma. No popular, se diz, no jargão insosso de hoje, que as pessoas não só possuem seus políticos corruptos preferidos (os seus malvados favoritos), como também têm, por mascotes, seus “ditadores” diletos.
Calvino, o menino das tirinhas que tinha não um lobo, mas um tigre chamado Hobbes (no Brasil, absurdamente chamado de “Haroldo”) dizia que está tudo bem o mundo ser injusto, só é uma pena que o mundo “nunca seja injusto a meu favor”. Eis aí todo o drama da vida. O mesmo pode ser dito a respeito da democracia, geralmente entendida reduzida ao aspecto procedimental referente ao voto direto em eleições presidenciais (por tal régua, não sei bem como avaliam as repúblicas parlamentaristas nesse caso ou ainda as monarquias constitucionais, mas esqueçamos da existência delas por ora). Há horas em que, se é eleita uma tal de “extrema-direita” (seja lá o que isso for), então a Dona Democracia está em risco e é preciso intervir para salvá-la. Noutros momentos, se foi eleita a esquerda, não valeu e é preciso agir com firmeza para salvaguardar a Lei, a Ordem, a moral e os bons costumes. Toda a retórica sobre “democracia” e sobre fazer valer a sagrada voz das urnas é apenas ritual: a verdadeira democracia é aquela na qual venceu meu voto - e todo resto é loucura.
É natural que seja assim, em todos os âmbitos da vida, e ninguém pode negar que é Trasímaco o verdadeiro vencedor do debate (travestido em “diálogo)” com Sócrates: os nossos amigos, eles sim, são persistentes e obstinados; os desafetos é que são teimosos, maníacos e obcecados. Nós mesmos somos francos, diretos, honestos, sem papas na língua; os outros é que são grosseiros, desbocados, impulsivos. Os outros são tresloucados e irresponsáveis; nós somos ousados, pensamos fora da caixinha. Nossos amigos, eles sim, reúnem-se e debatem em alegre confraria; já os nossos adversários, eles conspiram e confabulam em seus conventículos e conciliábulos nefandos. É aos camaradas e amigos que devemos lealdade, compreensão e empatia. Aos inimigos, nem mesmo a lei. Ou acaso somos loucos o bastante para odiarmos os amigos e amarmos os nossos inimigos?
Analogamente, é assim que, sem nem entrar-lhes no mérito, as medidas autoritárias ou repressivas dos regimes longínquos com os quais simpatizamos (por razões estéticas, por modismo ou porque sim) constituem uma modalidade de democracia defensiva (“democracia militante”, como dizem os fãs do atual Superior Tribunal Federal brasileiro, em seus tempos de calvocracia). Já medidas análogas alhures constituem, aí sim, tirania, totalitarismo, fascismo, comunismo, satanismo ou qualquer coisa que o valha.
É assim que esquerdistas podem defender a União Soviética de Stalin e Cuba e a Coreia Popular (mais conhecida como Coreia do Norte) e, ao mesmo tempo, amaldiçoar Delfim Netto porque ele participou do regime civil militar brasileiro (mais conhecido como “ditadura militar”). É da natureza humana: o afeto reiteradamente investido num objeto de amor dificilmente poderá dissipar-se qual bolha de sabão. Pela inércia, mantém-se mais ou menos inalterado ou, diante de ataques ao ídolo, em reação, até se fortalece, como prova de amor (em um credo quia absurdum “laico” - ou não tão laico assim). Quando os alicerces desse culto desabam, as ruínas frequentemente são reaproveitadas para a construção de um novo ídolo - ou ainda a chama do amor se converte, igualmente calorosa, em labareda de ódio. É precisamente por isso que não raro são os ex-comunistas os anticomunistas mais ferrenhos e paranoicos. Os investimentos afetivos são dos mais intrincados que há.
***
Uma coisa semelhante se passa, sem mais delongas, com Israel, o chamado Estado judeu, fundado em 1948, que foi feito em ídolo por cristãos dispensacionalistas, por liberal-conservadores direitistas sem religião e por esquerdistas ocidentalistas. Se o esquerdistas old-school erigem altares a Cuba (ou talvez à China ou à antiga União Soviética); os duginistas e outros tipos estranhos, à Rússia de Putin; e os progressistas identitários, a sabe-se lá o quê (talvez a San Francisco); a nova direita liberal-conservadora, por sua vez, oferece seus sacrifícios e prostrações a Israel ou a aquilo que eles acham que é Israel - a Israel que imaginam: branca, ocidental, democrática e filo-cristã - imagem esta que não se encaixa bem com a complexidade da sociedade judia israelense, que também inclui seus haredim, ultra-ortodoxos, cabalistas e extremistas.




É preciso admitir (com o perdão da metonímia) que, sobretudo hoje, o direitismo vulgar costuma ser ainda menos estudioso (bem menos) do que o marxismo vulgar. Se abordarmos o defensor de Israel mais empolgado de todo o X/Twitter, Instagram e Whatsapp, e perguntarmo-lhe sobre Likud, Shas ou sobre as questões mais básicas acerca da política israelense contemporânea ou do sionismo, ele (ou ela) muito provavelmente olhará, a face aparvalhada, sem fazer a mais mínima ideia do assunto. Veja, não é como se fosse obrigatório ter um PhD na área antes de ser lícito esboçar qualquer opinião; mas você há de convir que é um tanto curioso defender e adorar um completo desconhecido de quem a gente não sabe nem o sobrenome e não tem nem o número de Whatsapp. É como se algum rapazinho se dissesse fã dos Estados Unidos da América, mas não soubesse o que é Partido Republicano e Partido Democrata, nunca tivesse ouvido falar em Abraham Lincoln, Boston Tea Party, Elvis Presley, Francis Ford Coppola, New Deal nem Frank Sinatra. O tanso nunca ouviu falar em nada disso, mas desfila pelas ruelas abraçado à bandeira listrada da América. É como se um admirador da chamada Revolução de 1964 (mais conhecida como golpe militar) fosse incapaz de citar o nome de sequer dois ou três presidentes-generais e andasse por aí pedindo intervenção militar. É como se um entusiasta da União Soviética ignorasse absolutamente tudo sobre Trotsky, Stalin, Lênin, Brancos, Bolcheviques, Mencheviques, nunca tivesse lido Marx, mas sempre trajasse camiseta vermelha ornada com a Foice e o Martelo. É como se… Bom, basta; vocês já me entenderam.
No caso de Israel, o amor incondicional e fanático é tamanho a ponto de indagarmo-nos o que seria preciso acontecer para que tal paixão fosse abalada. Nesse caso, a capacidade de “passar pano”, como dizem os jovens, parece não conhecer limites. Podemos especular, muy retòricamente: e se Israel anunciasse a quem tiver ouvidos para ouvir, que almeja a faxina étnica, o deslocamento de todos os palestinos, cristãos e muçulmanos? Se iniciasse uma campanha militar para levar isso a cabo e passasse a cotidianamente bombardear hospitais, escolas e toda a infra-estrutura civil a ponto de transformar Gaza em escombros? Se bombardeassem até mesmo o complexo de umas das igrejas cristãs mais antigas do mundo, como, por exempo, a Igreja Ortodoxa Grega de Santo Porfírio em Gaza, com refugiados abrigados ali dentro? E se o próprio Papa condenasse isso e também os Patriarcas greco-ortodoxos e todos os líderes cristãos da Terra Santa? Os cristãos sionistas brasileiros de Osasco e todas as partes do Brasil, que nem sequer sabem que existem cristãos na Palestina, Síria e Líbano, continuariam a dizer que tudo isso é normal e é louvável e que há terroristas do Hamas escondidos atrás da porta em cada um desses prédios? Bom, pensando bem, iriam, claro.

Mas, ok, e se Israel assassinasse jornalistas, bombardeasse o hospital batista americano, bloqueasse toda a ajuda humanitária? E se colonos israelenses atacassem caminhões trazendo comida e medicamentos e começassem, na frente das câmeras e pisar nos pacotes e a destruir os alimentos e frascos de remédios, colocando até crianças pequenas, seus filhos, para fazerem isso também, sob aplausos e risos, dançando? E se mais de um milhão de palestinos, mulheres e crianças, começassem a passar fome, com muitos literalmente morrendo de fome e sede, em um desastre humanitário e Israel começassem a assassinar, em outros países, os enviados envolvidos em negociações diplomáticas para um cessar-fogo ou acordo de paz? E se, no país, virasse uma trend do Tiktok gravar vídeos de deboche, com o gôzo dos sádicos, abrindo lentamente a água da torneira e acendendo a luz e rindo dos árabes que estão sem água e sem luz há semanas? Ou se filmassem, ao risos, seus filhos fantasiados de palestinos, com as roupas andrajosas, o dente pintado de preto, o cabelo desgrenhado? E se os palestinos começassem, naturalmente, a tentar emigrar em massa, saindo desesperadamente da Palestina e Israel não deixasse eles cruzarem a fronteira para fugir da Terra Santa e os metralhasse e bombardeasse ali mesmo, alvejando campos de refugiados também, com aqueles mulheres sempre chorando, as crianças esquálidas e o pacote todo? E se, ainda por cima ,os ministros de Estado, falando em inglês, na televisão, justificassem tudo isso, dizendo que não se importam com as crianças palestinas e que os palestinas não passam de "animais" que não merecem direitos humanos e que "não existem civis palestinos inocentes"? Talvez alguns dos israelólatras coçassem a cabeça e começassem a questionar-se: “bom, ‘per’aí. É.. talvez, isso esteja começando a ir longe demais…” Será?
E se várias vozes no parlamento defendessem o uso da bomba atômica em Gaza? E se vários soldados israelenses fossem filmados torturando e estuprando prisioneiros palestinos (do sexo masculino mesmo), com torturas e humilhações envolvendo urinar em cima dos prisioneiros, obrigá-los a imitar animais e privação de água e comida e do direito de ir ao banheiro fazer as necessidades, bem como privação do direito de fazer orações? E se esses prisioneiros apresentassem lesões intestinais e ferimentos severos? E se, sob denúncia, tais soldados estupradores fossem presos e aí uma multidão furiosa, incluindo civis e deputados do parlamento, invadissem a prisão ou base militar e, em protestos, exigissem que os soldados fossem soltos, pois não fizeram nada errado ("vale tudo") e têm o "direito" de estuprar e sodomizar prisioneiros e prisioneiras (pois os árabes "só entendem assim"), enquanto autoridades políticas e religiosas discutem, na TV, se as leis e costumes judaicos permitem e defendem que prisioneiros(as) sejam estuprados(as), com alguns argumentando que permitem, sim. E se o estupro passasse a ser visto como algo válido por amplos setores de uma sociedade cada vez mais radicalizada, a ponto de mais de 60% dos israelenses, em algumas pesquisas, serem contra investigar soldados judeus acusados de estuprar prisioneiros árabes?
E se prisioneiras palestinas em prisões israelenses, mulheres e meninas, fossem rotineiramente mantidas em gaiolas, sem comida, e sofressem múltiplos abusos sexuais? E se isso for a regra para palestinos detidos, sejam civis ou pessoas que participaram de protestos?
E se, ainda por cima, Israel aprovasse uma lei que diminui a pena para os judeus que estuprarem palestinos, ao mesmo tempo em que dá penas severas a cidadãos israelenses árabe-palestinos que assediarem sexualmente mulheres judias? E se as leis israelenses também proibissem a miscigenação e campanhas políticas na TV orientassem os cidadãos israelenses a denunciarem mulheres judias que estejam se relacionando com árabes, com milícias atacando casais assim?
E se mais de 60% dos judeus israelenses também fossem contra qualquer ajuda humanitária a moradores civis de Gaza, incluindo mulheres e crianças, ques estão sem água, comida e remédios, mesmo se a ajuda humanitária for distribuída por organizações neutras?

Você é contra ou a favor de Israel permitir entrada de ajuda humanitária a moradores de Gaza agora (levando comdia e remédios), se a ajuda humanitária for levada por organizações internacionais que não tenham nenhuma ligação com o Hamas nem com UNRWA?
[cor verde é "CONTRA", cor azul é "A FAVOR"]
- 68% dos judeus israelenses, em dada pesquisa, são CONTRA (permitir a entrada de ajuda humanitária)
Nesta altura, o leitor ou leitora indignado(a) poderá me interromper e dizer que é óbvio que, num cenário tão absurdo assim, qualquer pessoa normal e decente denunciaria tamanho absurdo, mas que isso, claro, jamais aconteceria e que não faz sentido imaginar uma situação hipotética tão exagerada só para bolar um argumento ad absurdum. Aí eu envio os links todos acima, mostro as notícias, as fontes, os vídeos, os relatórios oficiais e revelo (surpresa!) que tudo que descrevi acima, na verdade, está acontecendo, neste exato momento. Aí vem (novamente, supresa!), a negação ou, como dizem, os ingleses, o denial. (afinal “who are you going to believe?”...) Depois, o “veja bem”, a minimização, a justificativa. Farão assim revirando os olhos e rebolando de forma ridícula. Alternarão, à la Jekyll e Hyde, entre “bem feito, massacrou pouco!” e “duvido que seja assim mesmo; Israel jamais faria isso, jamais!”, numa sequência previsível, estereotipada e, perdão, um pouquinha asquerosa. Outros dirão que é "o Povo de Deus" e ninguém pode julgar.
Heresias cristãs à parte, parte do problema consiste em medinho de ser chamado de esquerdista - o que é engraçado, considerando-se que Israel financia e mantem até hoje os kibbutzim, que são grandes assentamentos - invasões à la MST - de agricultura coletiva; uma forma de socialismo dentro do regime híbrido israelense, ainda que um socialismo nacional-judeu. Em se tratando de Israel, a direita, curiosamente, comporta-se de maneira igual à esquerda identitária Woke, com suas acusações de racismo e seu ímpeto censor. O mesmo tipo de direita que se compraz em fazer piadas de preto, índio e boliviano, para mostar o quanto é valente e politicamente incorreta, estende a Israel e até aos judeus em geral um manto protetor - o que é curioso, em se tratando, a comunidade judaica (majoritariamente branca), de uma das mais comunidades mais prósperas e privilegiadas do mundo, e, em se tratando de Israel, do maior beneficiário de ajuda americana e de um Estado nuclear.
Em israel, aliás, a maior parte da terra pertence ao Estado e o primeiro país a reconhecer e apoiar o Estado judeu foi a União Soviética. Foi durante a ditadura militar, no governo do General Ernesto Geisel, que o Brasil votou a favor da Resolução 3.379 da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) que classificou o sionismo como “uma forma de racismo e discriminação racial”. Ao longo do século, vários tem sido os anti-sionistas (mesmo antes de criação do Estado) e os críticos de Israel - de Salazar a Charles de Gaulle e Ron Paul, passando por Gandhi, Pat Buchanan, Murray Rothbard, o General João Figueiredo (nenhum deles exatamente um esquerdinha) e pelos Papas Pio X, Bento XV, Pio XII (vide a Encíclica Redemptoris nostri cruciatus), Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e o atual Pontífice de Roma, o Papa Francisco. Hoje até os EUA recentemente têm condenado, no governo Biden, a campanha militar israelense (embora continuem enviando milhões de dólares) bem como vários governos europeus, tanto conservadores quanto progressistas - na verdade, a maior parte do mundo. Você não precisa ser um esquerdista sujo para entender que é não é certo expulsar pessoas do território onde vivem há séculos, implementar um tipo de apartheid nem bombardear igrejas, escolas e hospitais. Ou estuprar prisioneiros.
E, evidentemente, inúmeros grupos judeus, religiosos e celulares, dentro e fora de israel, têm denunciado o massacre do povo palestino e protestado - muitas vezes sendo reprimidos pela censura e pelo aparato estatal policial-militar, seja em Israel ou nas ruas de Washington D.C. Sua vozes clamam aos céus por justiça
Ora, de volta ao Brasil, um posicionamento assumido, por exemplo, em redes sociais é efêmero e, em geral, incapaz de mudar ou afetar qualquer coisa. Contudo, o estranho caso de amor da direita brasileira e seus influencers (em imitação da norte-americana) por tudo que Israel faz e comete não é apenas estranho e constrangedor: moralmente falando, ter sido defensor - e entusiasmado ainda! - de um genocídio em tempo real (ou, para não entrarmos nesse mérito terminológico, de um grande massacre) pega mal - perante a História (no caso de quem tem pretensões de nela entrar) e mesmo perante o Senhor, no dia terrível do Juízo Final - no caso de quem crê nessas coisas e deseja entrar em Seu Reino.
Ocorre que, perante o amor a um Ídolo, empalidecem considerações de ordem soteriológica, ética ou moral.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
Contribua com nosso trabalho (pix):

Comments