O geopolítico russo (e intelectual influenciado parcialmente pelo Tradicionalismo) Alexandr Dugin, recentemente publicou texto no Twitter elogiando efusivamente o livro de Kemi Seba (escritor tradicionalista de Benim) sobre pan-africanismo, e destacando pontos com os quais ele, Dugin, "concorda totalmente". O ideólogo russo faz algumas ressalvas à posição de Seba no fim do tuíte, mas considera "geniais" os elementos elencados, que ele resume.
Para mim, são praticamente todos muito problemáticos, mas destaco, especialmente, os pontos 11 e 12 (vide abaixo), que, em suas implicações dizem respeito ainda mais diretamente ao Brasil.
[Segue, sem grandes revisões, tradução minha abaixo de trecho do texto de Dugin sobre o livro de Kemi Seba]:
11. Quando mais negro, melhor. Os mulatos [segundo Kemi Seba] devem ser levados de volta à melatonina – o casamento de negros de pele mais clara com negros de pele mais escura deveria ser adotado como uma norma sanitária. Isso seria a ação mística de libertação da escravidão e da dispersão - para apagar a branquitude como marca de danação e doença espiritual.
12. Quilombos podem ser criados não só na África mas em outros territórios em que africanos vivem – o primeiro estado africano baseado no princípio quilombola foi criado em Pernambuco (Brasil) e durou de 1604 e 1694. Era chamado de Palmares e sua capital Makaku. Por mais Palmares!
Tudo isto é genial!”
Dugin concorda, portanto, como se pode ver, com princípios mais radicais do afrocentrismo e de um movimento negro que defende medidas explicitamente racistas - dentre elas, a ideia de que mulatos, ou seja, mestiços, não deveriam existir. Na verdade, o casamento de mestiços com negros deveria ser “uma norma sanitária” [“genial!”, não se contém Dugin] a fim de “escurecê-los”. Seria a aplicação inversa do “embranquecimento” incentivado pelas elites racistas da Primeira República.
O que há de comum entre esta medida sanitária e aquela das elites da República Oligárquica é a imitação do código racista anglo-saxão segundo o qual o mestiço é uma excrescência e não deveria existir. Para elas, pior do que ser preto [ou branco, no caso da retórica de Kemi Seba], pior do que ser indígena, é ser mestiço. A hierarquia racial que o Norte Geopolítico incentivou a partir de fins do século XVIII é uma bizarrice, mas pior ainda é seu ódio às mesclas, misturas, mestiçagens ou miscigenação que ameaçam os limites definidos pela classificação racial que eles criaram.
Dugin não vê nada errado nestas ideias de Seba. Ele as considera geniais. É verdade que ele discorda (vide o print-screen abaixo) da tendência a se cair no racismo biológico e no ódio ao branco (coisas que estão para lá de explícitas na retórica do pan-africanista Kemi Seba - que adotou um nome que significa “Estrela Negra”). O russo, porém, não vê nada demais na ideia de que a cor da pele seja uma "marca espiritual" e que o mestiço, portanto, seja encarado como expressão de degeneração. A Idade de Ouro esperada por Dugin [e por Seba] é racializada. Não há espaço nela para o brasileiro, este ser de fronteiras, que nasce no espaço limítrofe.
É difícil imaginar uma maneira em que esta visão possa ser aplicada ao Brasil (um país em que quase metade da população [umas cem milhões de pessoas] se declara parda), sem levar ao caos social. Seba e Dugin oferecem uma chave na instrumentalização da ideia de Quilombo, ideia esta que é lida por Dugin quase que no tom de exclusivismo racial e étnico.
Sou, é evidente, favorável à ideia comunitária do Quilombo, regida por princípios culturais próprios e por certa autonomia administrativa e identidade cultural. Porém, Dugin e Seba deveriam pesquisar mais para entender que em Palmares viviam também pretos crioulos, mulatos e até brancos pobres - e que, no antigo território de Palmares, são identificadas também ruínas de igrejas.
O exclusivismo e segregacionismo étnico e racial defendido por Dugin e Seba [basicamente, “todo mundo com uma raça e etnia definida e cada raça em seu quadrado”] não serve ao Brasil. É o anti-Brasil por excelência. O Brasil é o país em que escolas de samba, fortemente associadas a uma cultura e história afrobrasileira, são também abertas a pessoas de todas as raças e etnias, e também a pessoas sem raça e etnia declarada, e também o país em que escolas de samba podem ser administradas por brancos, mestiços etc, sendo antes emblemas da nacionalidade que da racialidade. O olhar segregacionista de Dugin e Seba não dá conta nem mesmo no Quilombo dos Palmares, como revela qualquer pesquisa decente sobre o tema.
Os duginistas no Brasil, assim, rebolam para escapar das críticas que lhes fazemos de importação das ideias etnicizantes de Dugin (a este respeito, confira, por exemplo, esta live sobre o modelo civilizacional étnico-racial no Brasil - como estudado por Darcy Ribeiro e outros - e sua incompatibiliade com modelos americanos e russos). Conforme a Sol da Pátria já explicou, em diferentes publicações, o ideólogo russo é partidário de uma radicalização do modelo de separação étnico-racial implantado no Império Russo e depois no Estado Soviético. Nesta visão, cada etnia deveria habitar em seu próprio território, com concessões na legislação civil para suas próprias identidades culturais. Na Rússia, existem até passaportes internos a fim de evitar o deslocamento das “nacionalidades”/etnias.
Este modelo cabe perfeitamente nas ideias racializantes descritas nos pontos acima (que Dugin elogia). Cada raça/etnia no seu “quadrado”, ou território, vivendo sob sua própria cultura, lei e organização sócio-política. As mesclas [mestiçagens ou a miscigenação de quaisquer tipos] seriam evitadas pois são entendidas como uma degeneração moderna.
Não é à toa que Dugin considera um país sem etnias – ou em que as etnias não exercem um poder central na organização comunitária – como um emblema da corrupção/degeneração. Ele critica os EUA por serem uma nação desetnicizada. Ora, o Brasil é muitas vezes mais "des-etnicizado" que os EUA (no sentido de que a grande maioria das pessoas não possui identidade étnica alguma - faça o teste e pergunte a seu vizinho qual a "etnia" dele).
A centralidade da ideia de etnia, com a qual Seba e Dugin ocultam certo racialismo latente, quando não um racismo explícito, não cabe de forma alguma na América Latina e na nossa forma própria de construir identidade. Não dá conta da experiência diária de nossos povos; nada contra as etnias e raças em si mesmas - mas gostamos tanto delas que as misturamos, e continuaremos a misturá-las, em novos arranjos que são o terror da limitada, estreita e reducionista imaginação racialista - seja ela de identitários pós-modernos ou identitários de direita que se pretendem "tradiconalistas" .
Nem Washington nem Pequim nem Moscou!
Pão, Terra, Tradição!
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