O duginismo - ideologia que tem seguidores no Brasil - é relativista ao extremo porque se fundamenta na noção de pertencimento étnico. Para o pensador russo Alexandr Dugin, um Estado só é legítimo se tiver por base a diversidade étnica - com base em identidades étnicas bem definidas. Países cuja organização social não giram em torno da etnia seriam, para ele, aberrações.
Dugin afirma isto explicitamente em mais de uma obra publicada. Alguns de seus seguidores negam isso - por razões de imagem pública - mas é justamente aí que Dugin coloca a demarcação entre uma sociedade potencialmente "Tradicional" e as demais, que seriam modernas e, portanto, irremediavelmente “degeneradas”. Se a população mantém um senso de pertencimento étnicos forte que central à vida pessoal e comunitária, então aquela população ou sociedade é potencialmente tradicional. Se não mantém, o melhor seria, para Dugin, que este país deixasse de existir, até para, assim, possibilitar, no processo de separatismo e fragmentação, o surgimento de novas etnias [Daí a existência de movimentos duginistas no Brasil que defendem o “separatismo”, embora eles prefiram não usar esse termo por razões óbvias, substituindo-o por “autonomia” ou algo que o valha.]
É por isso também que o geopolítico russo despreza profundamente o Estado-Nação - é que este propõe uma noção de pertencimento que não passa necessariamente pela centralidade da identidade étnica. Os seguidores de Dugin também preferem negar ou varrer este aspecto da chamada "Quarta Teoria Política" por medo de danificarem sua imagem pública. Mas ele está explícito nos livros. O repúdio ao Estado-Nação é central na obra de Dugin.
No lugar do Estado-Nação, o russo defende o Império. Em linhas gerais, e simplificando a questão, o Império se torna possível, para ele, quando uma etnia é modelada pela ''incorporação'' de uma ideia especial. Uma Ideia no sentido platônico - um ''arquétipo". Dugin prefere a palavra Anjo ou Arcanjo, um Universal que modela certas etnias para que possuam um papel missionário expansionista em termos territoriais e/ou econômicos. Essa superetnia continuaria sendo fundamentalmente uma etnia diferente das demais, mas se torna, então, capaz de governar outras etnias.
É assim que Dugin vê os “grão-russos” [os russos étnicos na antiga terminologia czarista, segundo a qual ucranianos seriam pequeno-russos] e a própria Rússia. E é assim que ele defende a ressurreição do fenômeno imperial e imperialista da Europa do século XIX. Dugin não tem problema nenhum com o expansionismo territorial imperial - desde que a etnia que dê sustentáculo ao Império mantenha a distinção das múltiplas identidades étnicas em seu território, estará tudo bem, segundo essa linha de raciocínio [Daí a necessidade de controlar as migrações internas, a criação de passaportes internos, os incentivos à etnicização de toda população etc].
Resumindo: as ideias de Dugin implicam que não há problema que um Estado Imperial se expanda e assimile novos territórios - desde que não provoque a diluição das distinções étnicas, o que, na visão dele, impossibilitaria a vivência em uma sociedade tradicional.
Guénon não reconheceria seu conceito de Tradição nestes elementos do pensamento duginiano. O pertencimento étnico não é importante para René Guénon. Para o francês, a Tradição e as formas tradicionais não dependem necessariamente da manutenção nem se sustentam necessariamente no pertencimento étnico. Além disso, René Guénon era imensamente crítico ao imperialismo, neocolonialismo e militarismo europeu do século XIX e XX
Cumpre deixar claro: esta concepção do duginismo seria estranha para os principais autores da chamada corrente Tradicionalista. O próprio metafísico Guénon, por exemplo, não reconheceria seu conceito de Tradição nesses elementos do pensamento duginiano. A questão do pertencimento étnico não era importante para René Guénon. Para o francês, a Tradição e as formas tradicionais não dependem necessariamente da manutenção nem se sustentam necessariamente no pertencimento étnico. Além disso, René Guénon era imensamente crítico ao imperialismo, neocolonialismo e militarismo europeu do século XIX e XX. Enfim, essa forma de trabalhar com a ideia de "sociedades tradicionais" é bem peculiar a Alexander Dugin e aos duginistas. Sabendo ou não, eles são favoráveis, ao mesmo tempo, ao imperialismo e à etnicização - fenômenos, nessa pegada, bastante modernos, aliás.
Em contraste, René Guénon, aliás, deu uma conferência em Sorbonne em dezembro de 1925 no âmbito do "Grupo de Estudos Filosóficos e Científicos para o Exame de Novas Ideias", cujo objetivo era debater propostas que superassem as rivalidades dos Estados europeus, ainda traumatizados com a Primeira Guerra Mundial, e refletir sobre a possibilidade de uma união continental e uma reaproximação entre Europa e Oriente. Guénon defendia que essa unidade e reaproximação só poderia ser alcançada pelo diálogo em torno da Metafísica, que ele considerava de fato o verdadeiro horizonte universal.
O que importa aqui é notar que o francês trabalhava: i. a favor do entendimento de povos e civilizações diferentes; ii. contra a conflagração da guerra e o desastre do Imperialismo; iii. a partir de bases universalistas. O relativismo [etno-centrado] extremo dos duginistas não é consequência das obras do tradicionalista René Guénon, que defendia que o Universal existe, que pode ser conhecido, que está na base de diversas culturas e 'formas tradicionais', e que pode ser mobilizado no entendimento mútuo inter-civilizacional. Guénon denunciava o pseudo-universalismo inscrito no eurocentrismo ocidental e em sua política neocolonialista, que passava por cima das diferentes culturas do globo e menosprezava seus saberes e conhecimentos - mas não o Universalismo em si. Pelo contrário, afirmava o Universalismo em tons fortes e fazia dele um apelo à paz. Já O duginismo abandonou este horizonte porque se misturou demasiadamente com o pós-modernismo - mas isto é assunto para outra ocasião.
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