Em Salamanca: morte e esperança
Salamanca,
mestra de Dom Miguel,
me ensina a morrer
sem a certeza de perecer
(Poema de Gilberto Freyre - 1956)
“É um grande prazer para um hispano transoceânico estar nesta materna Salamanca”
(Assinatura de Gilberto Freyre no Livro de Ouro da Universidade de Salamanca - 20/02/1969).
“Talvez seja das viagens pela Espanha, dos contatos com a Espanha, da convivência com o povo espanhol em 37 e em 23, que Gilberto Freyre conserve impressões mais fortes (…). Ele se sentiu num mundo mais seu, que se sentiu pertencer àquela terra, à sua gente e às suas tradições de uma maneira toda especial”
(Diogo de Mello Menezes, primeiro biógrafo)
Gilberto Freyre considerou – em várias ocasiões – que não se sentiria um escritor completo até que escrevesse seu velho projeto de Um brasileiro na Espanha, uma obra que requereria a observação participante do mestre de Apipucos na vida social espanhola durante um ano.
Apesar de Freyre ter visitado a Espanha em nove ocasiões (1923, 1937, 1956, 1965, 1969, 1970, 1976, 1980 e 1981), estas visitas sempre foram curtas. O projeto de pesquisa das origens ibéricas teve várias tentativas que não puderam ser levadas a cabo - entre elas, a sugestão de Julián Marias - no início dos anos setenta - de que ele se tornasse embaixador brasileiro na Espanha.
A primeira tentativa de escrever Um brasileiro na Espanha foi feita em 1931, quando, estando exilado em Portugal, decidiu postergar o projeto espanhol para dar um curso na Universidade de Stanford, curso que servirá de base para escrever Casa-grande & senzala. Quanto à segunda tentativa, em 1937, foi a Guerra Civil que impediu sua realização, ainda que pudesse visitar o castelo de seus ancestrais galegos, os Freyre de Andrade, e passar por Salamanca, na primeira das três visitas que fará à cidade, durante sua vida.
O fato de não ter realizado o projeto sonhado não quer dizer que Gilberto no tenha conseguido percorrer e desenvolver teoricamente seus itinerários hispânicos através de centenas de páginas na sua enorme bibliografia de livros, artigos e introduções – algumas publicadas na Espanha – assim como a importante correspondência que trocou com autores espanhóis, muitos dos quais recebeu na sua casa de Apipucos.
Portanto, é possível traçar diferentes itinerários hispânicos de Freyre, em um sentido mais além do espanhol (o hispânico como o ibérico), ao identificar a marca ibérico-medieval – com suas interpenetrações mouriscas, sefarditas e cristãs – no Nordeste brasileiro, especialmente durante os 60 anos da União Ibérica; ou ao traçar as afinidades, contrastes e possíveis futuros geopolíticos – como o de aspirar a uma federação de cultura entre países de língua espanhola e portuguesa - em suas inter-relações hispânicas, no livro O brasileiro entre os outros hispanos, onde também reflete sobre o tempo hispânico frente ao “time-is-money” anglo-saxão; ou ainda ao esboçar sua hispanotropicologia como sugestões filosóficas e antropológicas em torno da influência dos franciscanos, enviados ao Brasil pelo rei Felipe II, sobre o desenvolvimento das civilizações hispânicas nos trópicos, no livro A propósito de frades.
Em seus livros de sociologia ou no seu diário de mocidade também é possível encontrar seus itinerários hispânicos vitais e formativos. Para Freyre, o Brasil não só era “hispânico” (ibérico) como era também o país mais hispânico de todos: duplamente hispânico. Estamos diante de um Brasil e de um Freyre que, em seus itinerários territoriais e espirituais, se mostram ambos duplamente hispânicos, como afirmava o autor. Primeiro por ser Portugal também uma cultura ibérica, e segundo pela experiência decisiva da época “filipina” da união de coroas como Espanha e Portugal, sob o cetro dos reis espanhóis (“os filipes”).
Pablo González Velasco – Brasilianista espanhol, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca, coordenador de ELTRAPEZIO.EU e especialista em iberismo e neobarroco, bem como na vida e obra de Gilberto Freyre e Américo Castro. Possui um blog chamado “Observatório de Geopolítica Panibérica”.
Comments