Traduzido e adaptado, pelo próprio autor, de "BRICS for the First Time Commits to Digital Sovereignty – and Brazil Could Lead the Way"
No início deste mês, o Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF) suspendeu a proibição do X (o antigo Twitter) depois que o oligarca Elon Musk finalmente cumpriu uma série de ordens judiciais. Foi o fim de um impasse de meses entre o Ministro Alexandre de Moraes e Musk (o X tinha sido suspenso em 31 de agosto). O assunto tem sido frequentemente abordado como uma questão de "liberdade de expressão", porém, com a recente Declaração da Cúpula do BRICS sobre soberania digital, é possível ver claramente que a discussão aqui não deve ser apenas sobre "censura". A Cúpula do BRICS em Kazan (Rússia), que ocorreu de 22 a 24 de outubro (2024), realizou, pela primeira vez, uma reunião com seu formato expandido, agora incluindo novos estados-membros como Irã, Arábia Saudita, Egito e Etiópia.
Como escrevi antes, é verdade, como muitos críticos e analistas têm enfatizado, que Moraes instrumentalizou a guerra contra a chamada "extrema direita" brasileira e pela suposta defesa da democracia como uma forma de expandir o poder do Tribunal e (poder-se-ia argumentar) seus próprios poderes. Já em 2023, um artigo do New York Times destacou que Moraes
“prendeu pessoas sem julgamento por postar ameaças nas redes sociais; ajudou a condenar um membro do Congresso em exercício a quase nove anos de prisão por ameaçar o tribunal; ordenou que fossem feitas buscas e operações contra empresários com poucas evidências de irregularidades; suspendeu um governador eleito de seu cargo; e bloqueou unilateralmente dezenas de contas e milhares de postagens nas redes sociais, com praticamente nenhuma transparência ou espaço para recorrer”.
No entanto, se as medidas controversas de Moraes podem ser usadas para lançar dúvidas sobre, digamos, a "sécurité juridique" do Brasil, por outro lado, a recusa de Musk em cumprir decisões judiciais e leis locais pode, por sua vez, lançar dúvidas sobre o bilionário e suas empresas, sem contar o papel político que elas podem desempenhar. A questão transcende o Musk, é claro. Em países como os EUA, há um debate em andamento sobre como as mídias sociais, como Facebook e Instagram - sem mencionar seus algoritmos - influenciam a política e as eleições. Controvérsias à parte, o Brasil mostrou que é possível forçar as Big Tech a atuarem em conformidade com as regras locais. Além disso, o assunto trouxe à tona, no Brasil, um debate maior sobre a necessidade de uma plataforma de mídia social nacional - ou, aliás, até mesmo um mecanismo de busca nacional. De fato, o Brasil até hoje depende de produtos dos EUA para tanto, como o Google. Não precisa ser assim. Agora que o nacionalismo econômico está de volta, é natural que se questione o status quo em relação a isso.
Trata-se de uma questão estratégica, e o problema vai muito além das mídias sociais - em última análise, é uma questão de soberania digital, um conceito que ultrapassa a esfera geoeconômica e geopolítica tradicional. Os serviços digitais hoje abrangem setores como transporte, energia, administração pública, IDs digitais (documentos de identificação), saúde, sistemas de pagamento e muito mais.
Na Europa, há um debate em andamento sobre a proposta que alguns chamam de #EuroStack, que seria uma infraestrutura pública digital bom base em tecnologia e investimentos europeus. Como diz Cristina Caffarra (cofundadora e vice-presidente da Competition Research Policy Network, Centre for Economic Policy Research - CEPR):
"A Europa fez a regulamentação digital e está em processo de implementá-la. Mas no final das contas isso depende de vencer as Big Tech num jogo pra forçá-las a agirem em conformidade com isso, o que é difícil e levará muito tempo"
Em 24 de setembro, um grupo multipartidário de membros do Parlamento Europeu participou da conferência “Towards European Digital Independence” ("Rumo à Independência Digital Europeia") em Bruxelas. De acordo com Francesca Bria (pesquisadora-associada da Stiftung Mercator), trata-se de investir em
“bens públicos e infraestruturas que protejam os direitos dos cidadãos, que garantam a autonomia e a segurança europeias, apoiem a expansão dos negócios europeus e atendam ao interesse público”.
Bria destaca o fato de que as empresas de Big Tech
“dominam todo o stack de tecnologia — de chips e infraestrutura de nuvem a sistemas operacionais… — solidificando assim sua posição de mercado por meio de externalidades de rede [network effects] e economias de escala… Isso sufoca a inovação, limita as oportunidades para os negócios europeus e prejudica a segurança econômica e a competitividade industrial da Europa”.
Hoje em dia, muito se fala sobre a desdolarização e sobre a proposta de uma moeda para os BRICS. Na terça-feira, a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff (atualmente presidente do banco dos BRICS) se encontrou com o presidente russo Vladimir Putin em Kazan e discutiu a expansão dos BRICS e o uso de moedas locais, substituindo o dólar. No entanto, houve ainda outro desdobramento novo que, até agora, tem sido muito pouco noticiado: o grupo BRICS, pela primeira vez, comprometeu-se, na sua Declaração de Kazan, com “a criação de uma estrutura global justa e equitativa para a governança de dados, incluindo fluxos de dados transfronteiriços, para abordar os princípios de coleta, armazenamento, uso e transferência de dados; garantir a interoperabilidade das estruturas de políticas de dados em todos os níveis”.
A dependência em relação a recursos externos de IA e serviços externos de nuvem faz com que ativos estratégicos e todos os tipos de dados sensíveis fiquem vulneráveis a estruturas estrangeiras, como o US CLOUD Act (isso vale para a Europa também). Como mencionado, os europeus, embora um pouco lentamente, estão agora cada vez mais se preocupando com essa questão.
Cumpre lembrar que, em 2013, a então presidente brasileira Dilma Roussef propôs desviar o tráfego da internet para evitar que passe por Washington, como parte de uma estratégia para combater a espionagem da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA): o plano ousado envolvia o desenvolvimento de um sistema de cabo de fibra ótica submarino que canalizaria todo o tráfego da internet entre o continente sul-americano e a Europa, evitando totalmente os EUA, mas não foi adiante. Foi revelado que, na mesma época, tanto Roussef quanto a então chanceler alemã Angela Merkel foram alvos de espionagem da NSA.
Já é hora de potências emergentes como o Brasil abordarem corajosamente a questão das redes sociais e a questão mais ampla da soberania digital, incluindo IA, moedas digitais e segurança cibernética. Esta conversa agora finalmente começou a acontecer dentro do escopo do grupo BRICS também - e esta pode muito bem se revelar uma das questões mais urgentes para o século XXI. juntamente com a questão energética e a questão da industrialização (que são, claro, todos tópicos conectados),
No ano que vem, o Brasil sediará a Cúpula do BRICS - também sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2025 (COP30). Estando no centro do palco, no G20, o Brasil agora tem a oportunidade de usar os próximos meses para defender a soberania digital como agenda para o Sul Global na nova ordem global policêntrica que está surgindo. O Brasil deveria usar a oportunidade para fazer campanha pelo desenvolvimento não apenas de marcos jurídicos, mas também de uma indústria digital e de uma infraestrutura digital que promovam a soberania. O BRICS, afinal, também precisa de um #BricsStack - e o Brasil tem a chance de liderar, mostrando o caminho para isso.
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