Em uma época em que tanto se fala sobre a necessidade de se "checar seus privlégios", um tipo de vitimismo judeu é hoje instrumentalizado pelo movimento sionista - apoiado sobretudo por setores da população judaica e da população cristão evangélica. A direita, de modo geral, critica (e com razão) a forma como o movimento "Woke" e o identitarismo politicamente correto instrumentalizam retóricas de vitimismo para silenciar críticos e pressionar pelo apoio a suas bandeiras. Curiosamente, quando se trata justamente dos judeus e de Israel, a direita faz coro com o discurso politicamente correto de "coitadismo", clamando por censura e pela criminalização de quem se atreva a criticar a ocupação ilegal israelense da Terra Santa, por exemplo. A tática é velha: basta falar em antissemitismo.
É preciso ser claro: o antissemitismo é "o socialismo dos imbecis", como na famosa frase ("Der Antisemitismus ist der Sozialismus der dummen Kerle") às vezes atribuída ao social-democrata alemão August Bebel. Trata-se historicamente de um mecanismo demagógico e perverso de bode expiatório, que ataca um grupo inteiro e um povo, responsabilizando-o por toda sorte de injustiças. Mas também é preciso não confundir as coisas.
Segundo a Conib, após o começo da guerra na Palestina, o antissemitismo no Brasil cresceu 1.200%. De acordo com a entidade, trata-se de um crescimento do "ódio". Segundo Daniel Bialski, vice-presidente da Conib (que também é operador do Direito, ex-advogado de Michelle Bolsonaro e de políticos como Sérgio Cabral, Milton Ribeiro e Carla Zambelli), é "a mesma coisa que racismo, é o mesmo que atacar negros, ciganos". Será que o ódio cresceu tanto assim ou estão usando uma definição de "antissemitismo" que classifica como racismo qualquer crítica a Israel? Pode apostar que é a segunda opção.
O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, irá aderir oficialmente à definição de "antissemitismo" da International Holocaust Remembrance Aliance (IHRA), que é a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto. São Paulo já aderiu. Bom, segundo essa definição, entre outras coisas, denunciar o tratamento desumano dado a palestinos em Israel, comparando-o a um apartheid é também uma forma de "antissemitismo" - sendo que, há anos, todas as lideranças cristãs das igrejas da Terra Santa e, hoje, o Papa têm denunciado o terrorismo de Estado israelense. A própria Anistia Internacional e a Human Rights Watch denunciam que tal definição canalha (de antissemitismo) é usada indevidamente para "blindar" um país, Israel, contra qualquer crítica e pedem à Organização das Nações Unidas que jamais adote tal definição.
Mas, segundo o discurso de algumas entidades e parte da mídia, os judeus, no Brasil e no mundo, são hoje uma minoria perseguida e estão sob ataque. Trata-se de uma distorção da realidade, num mundo em que Israel é potência militar nuclear apoiada incondicionalmente pelos EUA (superpotência hegemônica no mundo) e numa época em que os judeus (no Brasil, América Latina, Estados Unidos, Europa e boa parte do planeta) são, em média, uma população branca de alta renda e altíssimo nível de escolaridade. Dados de 2012, por exemplo, indicavam que os judeus brasileiros eram o grupo religioso com a maior renda e escolaridade do país, tendo uma renda média de R$ 4.701 (em 2012). Para fins de comparação, na mesma época, a renda média de evangélicos da Igreja Evangélica Pentecostal Deus é Amor era de apenas R$ 345, somente 1% deles tendo nível superior completo.
O perfil é parecido internacionalmente. É evidente que existem comunidades judaicas mais pobres, como é o caso dos judeus de origem russa de Nova Iorque, de modo geral. Mas, de qualquer forma, nos EUA, por exemplo, mais da metade das famílias judias possui renda acima de 100 mil dólares por ano, o que é bem acima da média nacional. Na Inglaterra e País de Gales, funcionários assalariados judeus ganham o dobro dos muçulmanos.
Mais do que isso, apesar das clivagens internas, trata-se de comunidade com alto grau de consciência grupal (groupness, nos termos do sociólogo Rogers Brubaker) que vai muito além da questão religiosa: judeus seculares e até ateus no geral também são consideradas parte da comunidade étnica judaica e assim se identificam. Segundo dados do início dos anos 2000, citadas pela monografia de Ricardo Hess Weinstein, de 2016, quase metade das crianças judias de Buenos Aires estudava em escola judaica e, no Brasil, metade das crianças em idade escolar frequenta instituição judaica - mesmo a maioria não frequentando a sinagoga com frequência.
Fonte: A diáspora judaica nas américas : uma investigação socioeconômica. Faculdade de Ciências Econômicas, Porto Alegre, 2016
Com esse capital humano e tais índices socioeconômicos, trata-se, para além disso, de comunidade influente, com alto poder de mobilização e representatividade, que conta com rede de apoio e solidariedade étnico-religiosa, suporte das lideranças cristãs evangélicas adeptas da teologia dispensacionalista e ainda com uma elite econômico-financeira transnacional que figura com destaque, no Brasil, no ranking das listas de bilionários mais ricos do país (é assim mundialmente, aliás, segundo a Forbes) e muito bem posicionada politicamente, contando com a Confederação Israelita do Brasil e outras entidades para representar seus interesses e para representar os interesses do sionismo - que boa parte da classe média e elite judaica identifica como sendo também seus próprios interesses.
Fonte: O Globo
Apenas a título de exemplo, no Brasil, a família Safra, com patrimônio combinado (em 2021) de US$ 16,6 bilhões, controla o banco de mesmo nome e é, segundo a Forbes, a família mais rica do Brasil, no topo do ranking. Destaca-se também a família Dayan e Zaher (do império dos grupos educacionais) e a família Krigsner (donos do Boticário), a família Klein (Casas Bahia), Horn (da Cyrela, maior incorporadora do Brasil) etc. Os exemplos da prosperidade e certa hegemonia judaica abundam, no nível nacional brasileiro e internacionalmente. Do seleto grupo dos homens mais ricos nos EUA, um em cada quatro é judeu e também fazem parte da comunidade israelita 10 dos 50 bilionários mais ricos no mundo inteiro.
Mesmo os judeus sendo apenas 2% da população dos EUA, se olharmos a lista dos 400 norte-americanos mais ricos, veremos que um em cada quatro deles é da comunidade judaica - e boa parte desses bilionários apoiam Israel e pressionam o governo dos EUA nesse sentido. Fonte: YnetNews
Na lista dos 50 bilionários mais ricos do mundo da Forbes, um em cada cinco são judeus. Fonte: The Times of Israel.
Vivemos em uma época em que o patrulhamento cansativo de "privilégios" de certos grupos tornou-se prática quotidiana. Estatísticas são brandidas, a respeito de homens, dos brancos etc. É evidente que existem disparidades de gênero e raciais e é preciso falar sobre isso (embora os grupos "Woke" frequentemente instrumentalizem tais dados para narrativas maniqueístas e que simplificam realidades complexas). Entretanto, mesmo com a aludida tendência geral, ainda gera desconforto falar sobre dados relacionados a uma das comunidades mais prósperas e influentes do mundo - mesmo quando os dados são eloquentes, sobretudo na sociedade norte-americana, onde a tribo se destaca na imprensa, indústria cinematográfica e fonográfica, show business e várias outras áreas. Isso significa que o soft power americano (ou "poder brando") projetado pela sua indústira cultural, em alguma medida, também reflete o soft power dos interesses da elite da comunidade judaica americana, que é predominantemente pró-Israel. Assuntos judaicos, no Brasil, também rendem cifras bilionárias nas indústrias cinematográfica e literária - vide este interessante artigo do Estado de Minas de 2014:
Fora das telas, as cifras relacionadas ao credo judaico, que possui o menor número de adeptos, somente 0,2% da população global, ou cerca de 14 milhões de pessoas, também são astronômicas. Principal economia do mundo, os EUA têm a maior comunidade judaica fora de Israel. E a chave do cofre do país mais rico do mundo está nas mãos de judeus há quase três décadas. Alan Greenspan, Ben Bernanke, os dois últimos presidentes do Federal Reserve (Fed, banco central norte-americano), são judeus. A atual, Janet Yellen, primeira mulher a assumir a direção do Fed, também é judia.
Na elite brasileira, não é diferente. Alguns dos empresários mais ricos do país são judeus. Estão entre eles, Samuel Klein (Casas Bahia), José Safra (Banco Safra), Hans Stern (H.Stern), Silvio Santos (SBT), Roberto Civita (Abril), Nelson Sirotsky (RBS), além de personalidades como Roberto Justus, Luciano Huck, Luciano Szafir, Pedro Bial (Bialski) e Boris Casoy. Na política, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, é judeu.
"Judaísmo rende cifras bilionárias com indústrias literária e cinematográfica", Simone Kafruni, Estado de Minas, 01/02/2014
Segundo o cientista político da Universidade de Chicago John Mearsheimer (principal nome da escola realista em Relações Internacionais), é impossível compreender a política externa norte-americana sem levar em conta a existência do que ele chama de "o lobby de Israel", que é formado por judeus de elite e também por líderes religiosos cristãos evangélicos que acreditam na teologia dispensacionalista - a tese é defendida em seu livro, publicado pela editora da Universidade de Harvard.
Em 2016, um membro da instituição que representa o corpo discente da prestigiada universidade de Stanford, o "Senado" estudantil (Student Senate), declarou, durante uma sessão, que não deveria ser considerado antissemitismo afirmar que judeus "controlam" a imprensa ou a economia, afinal, seria válido refletir sobre a questão e sobre essa "dinâmica de poder" - e foi obrigado a pedir desculpas e se retratar por isso. Contudo, ele está longe de ser o primeiro a dizer algo parecido.
O Times of Israel, em 2012, publicou artigo do escritor judeu norte-americano Elad Nehorai com o título provocativo "Jews DO control the media" ("Os judeus controlam SIM a mídia"). O mesmo Times of Israel, em 2013, publicara matéria sobre o "pacto" que figurões de Hollywood inicialmente haviam feito com a Alemanha de Hitler, para evitarem perder o mercado alemão. O artigo casualmente menciona o fato de que empresários judeus, já àquela época, "controlavam Hollywood" - está implícito na própria manchete "Did Nazis run the Jews who ‘run Hollywood’?" ("Os nazistas mandavam nos judeus que 'comandavam Hollywood'?"). Em 2008, o Los Angeles Times já publicava artigo de opinião de Joel Stein chamado "Who runs Hollywood? C’mon" ("Quem comanda Hollywod? Ora..."). No seu texto, Stein, que é judeu americano, comenta sobre uma carta-aberta assinada por executivos da indústria cinematográfrica de Hollywood e observa como todos os que a assinaram fazem parte da comunidade israelita: Brad Grey, então presidente da Paramount Pictures; Robert Iger, Executivo-Chefe da Walt Disney na época; Michael Lynton, presidente da Sony Pictures; Leslie Moonves, presidente da CBS (e sobrinho-neto de David Ben-Gurion, que foi Primeiro-Ministro de Israel) etc etc etc. Ele escreve, provocativamente, que, como judeu, com orgulho, ele queria que esse extraordinário sucesso da comunidade judaica fosse mais divulgado, mas que, quando conversou com Abe Foxman, o líder da ADL (a Liga Anti-Difamação, grupo judaico norte-americano que combate antissemitismo), Foxman achou que não seria uma boa ideia divulgar esse tipo de coisa, pois seria "perigoso".
"Os judeus controlam SIM a mídia" - manchete provocativa do The Times of Israel, assinada por Elad Nehorai
Diante de tais dados e desta realidade, diante da situação de opressão que cristãos e muçulmanos palestinos vivem, sob ocupação israelense, e diante do genocídio que é levado a cabo na Terra Santa hoje por autoridades sionistas (bombardeando igrejas, mesquitas e hospitais), chega ser ridícula, beirando as raias do absurdo, a tentativa de inverter as coisas, retratando anacronicamente judeus essencialmente como vítimas ou como oprimidos, num momento em que, em um mês, Israel causou a morte de mais crianças na Palestina do que os EUA fizeram em anos de Guerra no Iraque (mas, ainda assim, o Estado judeu, com apoio de Washington e de boa parte da imprensa ocidental, não sofre sanções internacionais). Entidades poderosas hoje se dizem representantes dos judeus, como, por exemplo a ADL (grupo acusado de espionagem e ligação com crime organizado que homenageou o mafioso Moe Dalitz, fazia campanha contra Mandela e a favor do apartheid sul-africano), o Congresso Judaico Mundial (por anos ligado à família Bronfman, que fez fortuna com a máfia durante a Lei Seca) e, no Brasil, a CONIB. Esses grupos influentes pressionam para que críticas a Israel sejam denunciadas e marginalizadas como uma forma de "antissemitismo".
Comparar os judeus brasileiros (ou argentinos ou norte-americanos ou europeus) com grupos como os indígenas latino-americanos ou os negros é totalmente inadequado e impróprio - e, de fato, cabe pedir aos judeus esclarecidos que adotam tais discursos que repensem a questão e chequem seus privilégios.
O antissemitismo político é uma excrescência e deve ser combatido. Em todo caso, genocídios perpetrados no passado não podem ser instrumentalizados hoje de forma oportunista para apoiar um nacionalismo israelense irredentista e que ameaça a paz mundial
Felizmente, o apoio ao sionismo expansionista e belicoso está, aos poucos, diminuindo entre a própria polução judaica. Neste ano (2023), centenas de estudantes judeus norte-americanos invadiraram o Capitólio (a sede do Congresso dos EUA) para protestar contra os crimes de guerra israelenses, gritando "not in my name" ("em meu nome, não!") para assim proclamarem que não concordam com as atrocidades perpetradas pelo Estado de Israel em Gaza e na Cisjordânia. Atentados terroristas ou atrocidades cometidas por combatentes palestinos obviamente não podem justificar bloqueios sem fim, demolições de casas, cortes de água e luz e ataques incessantes a hospitais, mesquitas, igrejas, campos de refugiados e infraestrutura civil (acompanhados de discursos genocidas).
O antissemitismo - político, étnico-racial e religioso - é uma excrescência e deve ser combatido (assim como devem ser estudadas suas causas sociológicas mais profundas). Da mesma forma, o nacional-socialismo hitlerista (o nazismo e neonazismo) não tem espaço na sociedade brasileira e não deveria ter no mundo ocidental - embora hoje o Ocidente faça vista grossa ao neonazismo real quando lhe interessa geopoliticamente. Em todo caso, genocídios perpetrados no passado, motivados por antissemitismo, não podem ser instrumentalizados hoje de forma oportunista para apoiar um nacionalismo israelense irredentista e que ameaça a paz mundial.
Autoridades cristãs da Terra Santa têm levantado, em uníssono, sua voz contra atrocidades israelenses e, cada vez mais, setores da população judaica religiosa ortodoxa e rabinos também têm levantado sua voz (sofrendo forte repressão do aparato de segurança israelense, como se pode ver em várias notícias e vídeos de rabinos e religiosos judeus sendo espancados por soldados por protestarem contra o bombardeio).
Polícia israelense agredindo judeus religiosos ultra-ortodoxos. Fonte: Al Jazeera
A maioria dos israelenses hoje (2023) também defende que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu renuncie. Com tudo isso, ficará cada vez mais inviável, para os propagandistas do sionismo agressivo, tentar igualar qualquer crítica a Israel a "antissemitismo". Essa tática simplesmente não vai mais "colar" - em alguns casos, poderá até sair pela culatra, fomentando antissemitismos.
Apesar dos sinais positivos que mencionei (protestos em Israel etc), ainda existe uma forte cultura de ódio no seio da sociedade israelense, visível nas declarações de seus políticos, líderes e jornalistas - e essa cultura, em algum grau, também existe no seio das diásporas judaicas. Precisamos falar sobre isso. isso precisa ser combatido - sem incorrer em antissemitismo e sem ter de pagar pedágio ao discurso politicamente correto (seja progressista ou direitista-sionista) e seus lobbies. Muito se fala sobre radicalismos islâmicos, que também precisam ser combatidos, mas parece ser proibido falar sobre radicalismo e extremismo judeu e sionista - ou sobre qualquer coisa envolvendo o tema. É hora de mudar isso e não podemos ser chantageados por um vitimismo anacrônico e descolado da realidade.
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