Tive o prazer e a honra de bater um papo, esses dias, com o grande Antonio Risério, historiador e antrópologo. Risério, na live conosco, no canal do Sol da Pátria, disse, em conversa descontraída, que Jorge Amado não acreditava em nada, que o baiano seria mais um daqueles comunistas ateus intleectuais que só entrava pro candomblé por razões políticas, pra apoiar a resistência do povo negro ou algo assim.
É uma provocação válida que o Risério faz, num papo sobre política, História, identidade nacional e identitarismos. Mas fiquei matutando. Esse tema da, digamos assim, "instrumentalização" de uma fé/prática mágico-religiosa, ou algo análogo a isso, é abordado, em outro contexto, também no livro "O Antropólogo e sua Magia" de Vagner Silva (sua tese de doutorado): em um dos capítulos, o antropólogo fala do caso de antropólogos que recebem as iniciações religiosas do candomblé para poderem, assim, inserirem-se em um trabalho de campo e colherem dados etnográficos para suas monografias - mesmo sem necessariamente acreditarem em muita coisa ali.
Mas, e aqui peço a devida vênia ao mestre Risério, o caso específico de Jorge Amado me parece ter lá seus meandros. Na sua literatura, sobretudo em "A morte e a morte de Quincas Berro Dágua", o escritor baiano digeriu e articulou formidavelmente bem noções profundas e até "esotéricas" do candomblé -noções oriundas de uma cosmovisão nagô. Não cabe falar detalhadamente disso aqui (foi, aliás, tema de minha dissertação de mestrado), mas o próprio livro supracitado é uma espécie de dramatização de um axexê, aproximando, com maestria, noções Yorubá sobre a Morte de temas da cultura popular europeia e brasileira. É também um drama cômico sobre destino, ori. Em sua obra, divindades do repertório afro-brasileiro representam, num mosaico, certos arquétipos e papéis sociais da cultura brasileira, no que ela tem de negra e culturamente mestiça. Jorge Amado, em seu Quincas Berro Dágua, dispõe-nas, ordena-as, recria-as num grande quadro carnavalesco que é também uma história de iniciação. Entendo que forma outra de se ler esse livro não há.
Já em 1982 (no artigo "Nascimento e dispersão de Quincas Berro Dágua") Almir Campos Bruneti argumentava que a concepção religiosa nagô/ketu/yorubá do Candomblé era uma chave de leitura de Quinca Berro Dágua - e de parte importante da obra de Jorge Amado. Não se trata só de crítica social, a ser lida apenas pelo prisma marxista ou coisa que o valha: no universo ficional de Quincas, "independentemente de sua verdade socioeconômica, válida ou não", haveria estruturas “de significado profundo”, que teriam como produto final “uma visão ampla de implicações psico-existenciais”. Essa “chave mágica”, para Bruneti, seria “a concepção religiosa da população baiana em geral”, em particular, “o candomblé, que aparece de forma proeminente em toda a novelística de Jorge Amado”.
Não se trata simplesmente de "liberdade" ou "luta contra a opressão", mas de realizar seu ori, sua verdadeira natureza.
J. Amado foi obá Arolu do conselho de doze ministros (obás) de Xangô no Afonjá. Ele relata que participou do rito fúnebre de axexê de Mãe Senhora, em "Navegação de Cabotagem" (livro de memórias), menciona en passant a necessidade de se retirar com a navalha ritual o oxu da cabeça da falecida. Não são temas superficiais. O escritor estava à vontade nesse universo e, a seu modo, o vivia - o que, para todos os efeitos, conta mais do que "crer".
Acho que o "ateísmo" de Jorge Amado era bem mais ambivalente e contraditório (no bom sentido). Não é questão aqui meramente "dialética" - é dialógico. E a mesma coisa pode ser dita sobre o comunismo do escritor.
No fundo, Amado, brasileirìssimamente, era um personagem complexo e multifacetado, como eram/são, goste-se ou não, figuras como José Sarney, Antônio Carlos Magalhães, Getúlio Vargas, Gilberto Freyre e outros tantos.
Seja eterna sua memória.
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