Em um de seus livros mais importantes, Wu Jyh Cherng, falecido mestre taoísta, fazia um alerta importante aos que estavam começando a meditar: era preciso muito cuidado para não confundir o conhecimento de determinadas palavras com a experiência direta da prática. O sacerdote estava se referindo, é claro, ao repertório linguístico ligado aos ensinamentos sobre a meditação:- respiração, unidade, transcendência, cessação dos pensamentos, unidade com o Ser... é possível, segundo ele, conhecer os significados mais abrangentes de todas essas palavras sem nunca ter experimentado nenhuma delas durante o processo meditativo.
Esse tipo de aviso, aliás, é bastante comum nas tradições orientais. Em diversos textos, inclusive naqueles oriundos dos treinamentos monásticos, há uma sinalização ao noviço para nunca confundir a pintura do prato de arroz com o prato de arroz em si, ou a corda com a serpente etc numa infinitude de exemplos com os pares miragem/realidade, no qual a miragem é a escritura ou aquilo que está sendo dito por alguém. Aqui não é preciso entrar nos meandros de uma filosofia da linguagem ou escarafunchar em problemas de nome-objeto que “começam” em Platão- e passam por Agostinho e Wittgenstein- atingindo quase todos os contemporâneos. Trata-se mais da ortopráxis em seu aspecto fundador: em que medida saber muitos nomes e dominar muitos conceitos- de uma ou de várias religiões- afeta o coração? Penso isso especialmente em relação à popularização de autores como René Guénon e F. Schuon. No Brasil de hoje, muitas pessoas dominam o léxico tradicionalista-: falam em tradição unânime, orientação solar, transmissão iniciática... mas quantas delas realmente adentraram, ao menos mentalmente, o núcleo reformista e axial da obra guenoniana? Quantas delas, aliás, não opinam sobre esses temas como se estivessem comentando a última partida do XV de Jaú?
O outro extremo desse domínio é também aquele tipo de pregação sobre a inutilidade de qualquer aparato linguístico no campo da prática religiosa. Normalmente, essa abordagem sempre desemboca num tipo degradante de sentimentalismo em que a doutrina é rebaixada em nome das emoções individuais (é a religião do eu com direito aos versos de Rumi fora de contexto: Dentro deste mundo há outro mundo/impermeável às palavras).
Evidentemente esses problemas são oriundos do próprio caráter indômito da linguagem dentro do campo religioso: ora ela codifica e assenta ritos e mitos, ora conduz a homilia e lá para diante formata teses heréticas. Não por menos, as chamadas “ciências da linguagem religiosa” têm buscado- com eficiência questionável- compreender as consequências dos enunciados religiosos na formação das catedrais teológicas.
Seja como for, é sempre para uns poucos que assuntos assim entram na ordem do dia.
Um poema de Fernando Pessoa
(Então vindas d’Além de Deus, como um arrepio, mesmo do Ser sem falar; insinuam-se no vácuo estas palavras:)
O INOMINÁVEL:
No meu abismo medonho
Se despenha mudamente
A catarata de sonho
Do mundo eterno e presente.
Formas e ideias eu bebo
E o mistério e horror do mundo
Silentemente recebo
No meu abismo profundo.
O Ser-em-si nem é o nome
Do meu ser inominável;
No meu mundo Maëlstrom,
O grande mundo inestável,
Como um suspiro se apaga,
E um silêncio mais que infindo
Acolhe o morrer da vaga
Que em mim se vai esvaindo.
Texto postado originalmente em: https://alexsugamosto.substack.com/p/linguagem-indomada
Comments