Uma versão deste texto foi originalmente publicada na revista Valete, número 17, em julho de 2024. Permanece atual.
Este texto não é sobre Marielle. No mesmo momento em que leio que o STF julgará os acusados de serem mandantes da morte de Marielle (e que Alexandre de Moraes, Ele-mesmo, determinou que o governo de SP deverá monitorar conversas do acusado Ronnie Lessa), fico sabendo que a série "Vale o Escrito" ganhará nova temporada. A série, de fato, parece uma novela, porque parece o Brasil, num círculo de arte que imita a morte que imita a arte que imita a vida e coisa e tal. Numa pichação de mau gosto no muro, em algum lugar em São Paulo, leio: “Marielle morreu antes ela do que eu” (assim mesmo, sem pontuação).
A série documental "Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho" do Globoplay (plataforma digital de streaming da Rede Globo), com entrevistas e outros materiais, aborda, entre outras coisas, o possível envolvimento de bicheiros no assassinato da ativista e vereadora carioca Marielle Franco, que denunciava justamente as milícias - com destaque para Ronie Lessa (ex-policial militar - PM - e ex-membro do Scuderie Detetive Le Cocq, o chamado "Esquadrão da Morte") e para Adriano da Nóbrega (ex-PM do Batalhão de Operações Especiais - BOPE - e pistoleiro. Ele aparece em mais de um capítulo da série documental supracitada). No grande público, pouca gente sabe da ligação das milícias de policiais e ex-policiais com o chamado "Jogo do Bicho" (Clube Barão de Drummond) e as figuras dos bicheiros contraventores, que comandam territórios e atividades de jogatina e apostas ilegais, mas também estão envolvidos com tráfico de armas e outras atividades criminosas, sendo eles a verdadeira Máfia brasileira. Na série, o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua família, naturalmente, são citados por suas ligações com alguns desses indivíduos “milicianos”/bicheiros (Adriano da Nóbrega, no caso).
Em relação a esse tema, alguns lugares-comum ou mitos se fortaleceram, implícita ou explicitamente, no senso comum de parte da esquerda e, repercutidos na grande imprensa, tornaram-se uma espécie de senso comum geral da população supostamente "bem informada". São eles:
As milícias estão ligados à política de direita especialmente - uma espécie de fenômeno paramilitar de extrema-direita
As milícias passaram a ter influência e poder graças ao governo de Jair Bolsonaro
As milícias, que praticam extorsão e controlam algumas atividades comerciais em certos territórios, são o "verdadeiro" crime organizado infiltrado no Estado - e não os traficantes, que seriam "peixe pequeno" em comparação
A vereadora Marielle Franco foi assassinada por tais grupos (supostamente de extrema-direita) por ser mulher, negra, lésbica e ativista em prol dos Direitos Humanos (!!!)
Todos esses quatro mitos acima são visões grosseiras e equivocadas da realidade brasileira.
Em primeiro lugar, milícia e narcotráfico já se confundem e se misturam, ora pelejando, ora em parceria, há décadas - tudo junto e misturado.
As próprias milícias são apenas uma das peças no complicado tabuleiro social do Rio de Janeiro sobretudo e, de forma mais geral, do Brasil - é um tabuleiro que inclui diferentes atores “não-estatais”, na falta de termo melhor, disputando com um Estado ausente e omisso o monopólio da violência e da oferta de certos serviços. A relação (ora de parceria, ora de competição) com o chamado jogo do bicho não é tampouco um tema novo.
Por exemplo, reportagem do jornal Extra (Globo) de 21 de fevereiro de 2021 fala em uma parceria (com foco em máquinas de caça-níquel), no Rio de Janeiro (RJ), entre, de um lado, "Ecko" (Welllington da Silva Braga), "visto como o principal chefe de milícia da cidade", e, de outro lado, o bicheiro Bernardo Bello, que, aliás, é entrevistado na série “Vale o Escrito”. Um artigo acadêmico de 2020 (“Ação entre amigos: relações entre banqueiros do bicho e milícias nas disputas político-econômicas da contravenção”), de Rômulo Bulgarelli Labronici (Universidade Federal Fluminense) já abordava essas relações intricadas entre bicheiros e milicianos, inclusive no assassinato de Waldomiro Paes Garcia, o “Maninho do Salgueiro” (que também aparece na série do Globoplay supracitada).
Ora, o Bicho é omnipresente no tecido social político brasileiro: Já em 1994, reportagem de Xico de Sá ("Bicho investe US$ 2 mi em eleições", Folha de São Paulo, 17 de abril de 1994) afirmava que o "Bicho" (ou melhor, os "onze maiores bicheiros" do Estado do Rio de Janeiro) haviam investido nada menos que US$ 2 milhões em eleições - essa quantia equivale a 4,24 milhões de dólares em 2024, ou 23 milhões de reais. O valor cobre as eleições de 1986 para o governo do Estado; para a presidência da República (1989), governo do Estado novamente (1990) e para a prefeitura (1992). No mesmo dia (em 1994), matéria do mesmo jornal ("Relação custo-benefício entre o Bicho e o poder", Folha de São Paulo, 17 de abril de 1994 ) noticiava que bicheiros da família do Anísio (Aniz Abraão David) teriam subido ao palanque de Moreira Franco (ex-governador do RJ), em apoio à sua campanha - também teriam também supostamente apoiado o ex-prefeito do RJ César Maia e até o ex-governador Leonel Brizola (que, assim como Maia, negou tais acusações) e ainda a campanha presidencial do ex-presidente brasileiro Fernando Collor de Mello. Na mesma série de reportagens, Xico Sá escreveu que "Bicheiros não escolhem partidos": segundo uma lista em poder da Procuradoria Regional Eleitoral, as "doações" de contraventores perpassavam toda a sopa de letrinhas partidária brasileira, chegando a candidatos de partidos como o PSDB, PFL (hoje DEM), PMDB, PPR, PRN, PDT, PTB, PSB. É um erro pensar que a coisa se restringe à malandragem carioca: o Espírito Santo teve o bicheiro José Carlos Gratz (que, dizem, mandava no Estado mais do que o governador) e o Mato Grosso teve (e tem) o Comendador João Arcanjo.
Recuando um tanto no tempo, o capo Castor de Andrade foi aliado dos militares durante o período dos presidentes-generais (também conhecido como ditadura militar ou, mais precisamente, ditadura civil-militar, como prefere o historiador marxista Daniel Aarão Reis). É nesse período que também se fortalecem no Brasil, em estreita relação com o Estado, as empreiteiras/construtoras. Novamente, fundindo parcerias políticas e de parentesco, Osório Pais Lopes da Costa, sócio do chefão Castor de Andrade, era também sogro de Johnny Figueiredo, o filho mais velho do general João Baptista Figueiredo, então presidente do Brasil. Castor de Andrade tinha até mesmo credencial do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) usada para se apresentar como agente de inteligência - e possivelmente o era ou pelo menos foi informante. O Capitão Guimarães, também entrevistado na série "Vale o Escrito", é até hoje, um dos chefões da Cúpula do Bicho e, tendo no passado atuado no DOI-CODI (foi expulso do Exército), também é um elo vivo com esse período e esses setores.
Mas a história não pára aí e seria inútil colocar o Bicho e outras coisas a ele associadas exclusivamente na conta dos militares ou da direita. Da direita à esquerda, passando pela Rede Globo, se enderam nesse fio os artistas progressistas da mesma Globo, os músicos, os sambistas de esquerda, as milícias, os terreiros de candomblé, umbanda e macumba, igrejas, o carnaval carioca, empreiteiras... Trata-se de máfia, contravenção, jogatina e isso tudo perpassa Volkskultur, soft power brasileiro, coronelismo, patrimonialismo, compadrio, deep state, o "maior espetáculo da terra", fé, crendice, fèzinha, oniromancia zoológica folk... - em bom português: cultura popular. Trata-se de uma engrenagem entre outras bastante enraizada no sistema total de dádivas/dons da sociedade brasileira. A série-documentário da Globo mostra como, na narração de Pedro Bial, os bicheiros, por décadas "reinaram supremo no palco do maior espetáculo da terra" (cito de memória, parafraseando), mas não conta - deixando antes implícito - como a próprio Rede Globo ajudou a construir, manter e alimentar a aura de glamour em torno dessas figuras e do jogo (em todos os sentidos) que eles jogam - e não o jogam sozinhos.
Nenhum jogo se joga sozinho.
Muita gente se lembra de como o ator José Wilker interpretou o simpático bicheiro Giovanni Importta, na novela "Senhora do Destino" (2004-2005) de Aguinaldo Silva, na qual fez (ou quase fez, não lembro bem) par romântico com a personagem de Susana Vieira, a Maria do Carmo. O personagem, de tão popular, protagonizou depois filme homônimo, protagonizado e dirigido pelo próprio José Wilker. Pareceria, por outro lado, um pouco mais constrangedor e fora de lugar hoje em dia o personagem Juvenal Antena, líder miliciano, interpretado, também de forma simpática, por Antônio Fagundes, na novela Duas Caras. O miliciano se gabava de saber tudo que se passava na favela cujo território controlava, através de suas "antenas" (metáfora para sua rede de informantes e capangas). Longe de ser o vilão da trama, era mais uma espécie de anti-heroi - tinha seus bordões e um namoro com uma dançaria de pole dance (interpretada por Flávia Alessandra, gatíssima) e coisa e tal. Sim, a Rede Globo já teve novela com miliciano retratado de forma positiva e interpretado por galã. Evidentemente, isso hoje parece algo um pouco difícil de se imaginar.
Mas eu fazia uma breve retrospectiva. Caminhando para o final dos anos 1990, em 1999, uma matéria da Istoé denunciava que os bicheiros supostamente controlavam a própria Loteria do Estado de Goiás, por meio de um contrato de concessão pública firmado com a Gerplan (empresa de fachada dos contraventores) durante o governo de Maguito Villela (PMDB). As relações promíscuas entre autoridades e o Bicho também perpassam laços familiares e afins: o próprio ex-governador e senador Maguito Villela (PMDB) foi padrinho de casamento de um dos grandes bicheiros goianos, Carlinhos Cachoeira.
Mais recentemente, o mesmo Carlos Cachoeira protagonizou uma série de escândalos milionários envolvendo a Delta Construções, que, na Era PT, participiu com destaque do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Pouca gente se lembra de que os primeiros escândalos de corrupção no primeiro governo Lula começaram após ser vazado, em 2004, o vídeo de uma conversa (filmada clandestinamente no aeroporto de Brasília) entre, de um lado, Waldoniro Diniz, então subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência da República (e homem de confiança do ex-ministro José Dirceu) e, de outro lado, o bicheiro Carlos Cachoeira, ele-mesmo. Na conversa, de 2002, Diniz, que, ironicamente, à época presidia, veja só, a Loterj (Loteria do Rio de Janeiro) tentava extorquir o bicheiro e empresário, exigindo propina para financiar as campanhas políticas de dois candidatos do PT e um do PSB. É o chamado Escândalo dos Bingos. Essa foi a primeira crise política de Lula, em seu primeiro mandato. A história não pára por aí. Na verdade, ao menos a ponta do rabo do Bicho aparece em absolutamente todos os grandes escândalos políticos da Era PT - até mesmo no Caso Daniel e de outros prefeitos petistas assassinados no ABC paulista existia alguma conexão com máfias do lixo e transporte e figuras do submundo.
O ano é 2023 (ano passado) e a primeira crise do atual governo Lula vem à tona em torno da ligação da ligação entre, de um lado, ministra do Turismo, Daniela Carneiro, e seu marido, o prefeito de Belford Roxo (RJ), Waguinho, com, de outro lado, o ex-policial militar Juracy Alves Prudêncio, o "Jura", líder miliciano, cujo bando cobra "taxa de proteção" em diferentes municípios na Baixada Fluminense (estado do RJ). Lula minimizou a ligação - e segue o jogo. Trata-se do governo que, para muita gente, foi eleito para, veja só, "acabar com as milícias" (além de acabar com um tal de fascismo) e para trazer à tona a verdade sobre o destino dela - Marielle. Veja bem: a Verdade, é bem verdade, liberta - mas também incomoda.
Recentemente, o já citado Ronie Lessa, ex-policial militar (PM) e autor dos disparos que mataram Marielle Franco, apontou Domingos Brazão como um dos mandantes do assassinato. A notícia causou desconforto, porque Brazão tem inúmeras ligações também com o Partido dos Trabalhadores (PT). Ora, A família Brazão tem longa trajetória na política fluminense e nacional: Domingo Brazão fez campanha para a ex-presidente Dilma Roussef, do PT. O irmão dele, o deputado Chiquinho Brazão, por sua vez, declarou apoio a Bolsonaro em 2022. Quem é o suplente de Chiquinho Brazão? Ninguém menos que Ricardo Abraão, que é sobrinho do já citado Anísio Abraão David, ele-mesmo, um dos chefões da cúpula do Bicho - que, sim, também aparece na série "Vale o Escrito"
Neste momento, petistas e esquerdistas em geral tentam enfatizar exclusivamente as ligações da família Brazão com a família Bolsonaro - para manterem suas narrativas sobre milícia, para-militares, direita, fascismo e sua martirologia sexual-racial. Segundo Michel Platini, presidente do Centro Brasiliense de Defesa dos Direitos Humanos (CentroDH),) Marielle, "pobre, negra, LGBT e comprometida com os direitos humanos, foi a escolha perfeita do sistema". É a mesma toada de um obituário da CUT e inúmeros outros. Bueno, em 2006, Renato Freixo, irmão do Marcelo Freixo (ele mesmo) foi executado com 17 tiros num quiosque na Barra da Tijuca. Os indiciados foram ex-policiais ligados, claro, a milícias. Ora, Marcelo Freixo, do PSOL, e sua famíia, se tornaram alvos por denunciarem grupos milicianos. Freixo é homem, branco, heterossexual e influente. Estamos falando, afinal, de pessoas que não gostam de ter seus negócios perturbados e que, nessas horas, não fazem muita distinção de cor, orientação sexual, partido político ou o que o que seja - um dos indiciados pela morte da vereadora, aliás, o ex-PM Edmilson Oliveira da Silva, conhecido como Macalé, é um sujeito mulato ou pardo ou, na novilíngua progressita, um "homem negro".
Mariele não foi morta por ser mulher ou por ser "negra" - aliás, sendo uma pessoa visivelmente de ascendência tanto branca quanto negra e com sua fisionomia caucasoide e seu perfil leptorrino - o nariz afilado - e os lábios delgados (no popular, "traços finos"), a maior parte da população brasileira de fato a descreveria como "mulata" ou "morena", que são termos nativos no sistema de classificação folk brasileiro.
O leitor esperto, se tiver tido paciência de ler até aqui, já percebeu que "milícia" é apenas parte da história, em uma trama que envolve esquadrões da morte, disputa por controle territorial, grupos milicianos formados por policiais e ex-policiais e coronelismo mafioso. Puro suco de Brasil, em suma. Este texto não é sobre Marielle.
Em todo caso, nessa trama, da qual abordei só a superfície (este pequeno ensaio não é um tratado de sociologia política brasileira nem uma investigação policial), imaginar que um ex-presidente brasileiro de direita (goste-se ou não dele) precisa ter sido o mandante do crime para a história fazer sentido é o próprio nonsense se fazendo passar por bom senso. Imaginar que as ligações da política brasileira com milícias (e Bicho e a fauna toda) se resumem à família Bolsonaro é puro papo furado. É por isso que as muitas pontas soltas permanecerão acerca de quem matou e/ou mandou matar Marielle, apesar da demanda de tanta gente. A verdade, como eu já disse, salva, mas também pode ser inconveniente. Noutras palavras, parceiro, o buraco é mais embaixo.
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