Uma homenagem do Sol da Pátria ao Dia do Nordestino
“…Esse mundo foi feito Diz a santa profecia E a natureza divina Fez a sua primazia O poeta com certeza Canta assim a natureza O Nordeste, a poesia”
Zé Bezerra, o águia de prata.
Somos nós herança dos tapuias, dos desbravadores d’além mar e do negro africano. Aqui nasceu o Brasil e brotou o primeiro brasileiro, mestiço, caboclo, cafuzo, que num átimo se espalhou pelas serras feito as sementes vermelhas da ibirapitanga. Por entre as voçorocas e a correnteza dos torós, uma nova gente foi se erguendo com os mandacarus que despontavam nas chapadas, desde a dádiva do Velho Chico.
Somos filhos dos filhos dos homens e mulheres que rumaram do mar aos sertões e lá e de volta outra vez, atravessando o Planalto da Borborema sobre intrépidos jumentos e desbravando a aridez desse mundão que é o nosso. Foram nossos ancestrais de perneira e gibão que aqui lavraram com suas crias para que estas erguessem a civilização do couro, um pilar sagrado de música, de fé, de força, de poesia e de sabores. O Nordeste foi dosado na doçura da cana que açucara nossa poesia e dá força ao braço dos nossos trabalhadores.
Somos curtidos pelo Sol meridiano, quarados sobre a tinta das itacoatiaras e os mistérios rupestres do Ingá. Quantos transes e revelações passaram pelos caminhos sertanejos, quantos sussurros acompanharam os tropeiros que cortavam a Caatinga com o branco ouro do algodão. E o rasgo das mortalhas volantes sobre o céu dos bravos vaqueiros, sempre a encher suas ancoretas à despeito da morte e da vida severina, quantas mensagens trouxeram? E quantas santas não surgiram aos jangadeiros, fortes domadores das velas do mar, enfrentando as tempestades desde as Terras de Aiocá até a Ponta do Mucurípe avistada por Pinzón.
Os ecos de reinos passados ainda habitam em nós, e através de nós em todo Brasil: o espírito indomado dos Potyguaras, a resistência imortal de Palmares, a memória viva de Canudos, são poucos exemplos do que fez de nós um Povo singular e misterioso, difícil de ser decifrado por quem não roeu da rapadura e bebeu água de pote sob a taipa de uma avó. Somos, naturalmente, todos filhos dessa mesma mãe morena, que bate as tangas na beira do rio e deixa o algodão quarar enquanto canta um antigo lamento mouro. Somos guiados pelo aboio que atravessa a névoa da manhã, enquanto cheiro da malva orvalhada limpa os pulmões. Vaqueiros e cantadores, poetas e pescadores, todos santuários de memória.
Nordeste são nove estados por onde pulsam os tambores afros, os sopros indígenas e as cordas ibéricas. É berço do samba de matuto, do forró, da ciranda, do frevo, do xaxado, do baião, do côco de praia, do axé, do martelo agalopado, do maracatu e da erudita escola armorial, sua expressão mais invocada. Em cada alpendre de interior ver-se-á um instrumento ou dois ou três, aguardando o desarmar das redes e o começo de um frenético bate-coxa, de um risca-faca ou de um duelo inspirado por cachaça. Seja berimbau ou marimba, triângulo ou fole, tudo serve à inconstância desse espírito caboclo que anima o sertanejo e que chega às cidades num ímpeto de chegar ao mundo. Nordestino é povo amostrado, orgulhosamente enxerido, inevitavelmente gaiato.
Mas é também um povo de paz e acolhida. Quando a embolada dá lugar ao repente, as paisagens viram xilogravuras e colorem-se em belos cordéis, expressando o profundo amor e respeito ao próximo, sobretudo ao visitante. Aqui formamos uma família sem fim, que envolve a vizinhança, o sítio, a comunidade e, principalmente, envolve o país, este Brasil que — deixe-nos repetir — nasceu aqui. A tentativa de diminuir o Nordeste em outras regiões, não sejamos bestas, sempre foi uma tentativa de abater o Brasil, de anular sua identidade, de destruir seu amor-próprio. Mas como afastar o Nordeste do Brasil se estamos no sangue e na memória de cada brasileiro? Se constituímos, ao lado de cada região, uma quintessência do espírito nacional?
Somos um povo de fé. Aqui enterramos nosso umbigo e por mais longe que tenhamos ido nunca esquecemos do nosso lugar. Todas as tristes partidas representam, no fundo, nossa intensa devoção ao retorno, à volta pra casa, à religação com nossos pais, nossos ancestrais e nosso Deus. Temos fé inquebrantável na vida e no futuro, tal como expressa pelas grandes romarias e procissões católicas, na sagrada jurema e nos mais antigos terreiros de candomblé. Somos a terra dos sebastianistas, dos grandes messianismos, da profecia final do Conselheiro. Somos casa de nossa amada Santa Dulce dos Pobres.
Esta semente crioula que habita o chão rachado, que resiste ao rio intermitente, que já viu tantos mundos se acabarem. Este pequeno caroço de umbu que avua no bico do corrupião e cai pelos lagos de outrora, fecundando a mata. Este vento quente que poliniza o tempo com as favelas e afulora os mandacarus. Esta gota serena de orvalho que calefa ao nascer do Sol. Esta constante e imparável anunciação que cavalga nua pela nossa terra: Nordeste.
Autores: Sara Cordeiro e Daniel Magalhães
Pão, Terra e Tradição!
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