Nota: Este texto foi publicado originalmente no blog do prof. André Luiz [https://andreluizvbtr.blogspot.com/] em 5 de março de 2014. Esta versão foi revisada e modificada para que apresentasse maior rigor conceitual na delimitação dos conceitos de raça, cultura e etnia.
Em dezembro de 2013, estourou uma polêmica em torno da escolha dos brancos Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert como apresentadores do sorteio da Copa do Mundo de 2014, em detrimento dos mulatos Camila Pitanga e Lázaro Ramos. O Ministério Público do Estado de São Paulo chegou a instaurar investigação criminal para averiguar possível crime de racismo. O promotor Christiano Jorge Santos declarou que as atrações musicais do evento [artistas como Alcione, Margareth Menezes, Alexandre Pires e do grupo Olodum] revelavam a natureza racista da escolha: “A Apresentação ficou para o branco de olho azul, o batuque ficou com o negro”, explicou.
O imbróglio revela a um só tempo a força de certo movimento negro e o preconceito e discriminação a que todos os cidadãos brasileiros que não se consideram afrodescendentes podem sofrer nesses tempos de politicamente correto e de imitação das neuras estadunidenses nesse lado de cá do hemisfério. Esta discriminação assume aspecto ainda mais feroz porque não se restringe ao campo jurídico, não diz respeito apenas ao estabelecimento de leis que dificultam a vida de pessoas com outra identificação, mas porque estabelece um discurso de classificação racial alheio à realidade do Brasil, importado dos conflitos raciais da América do Norte, e que apaga da memória oficial ou menospreza elementos cruciais da formação nacional.
O promotor Santos opinou que os atores mulatos ''representam melhor a composição étnico racial do povo brasileiro.''[1]. Mas segundo o IBGE, quase metade da população do país se declara branca [2]. Porque não podem ser representados? Ora, na festa da FIFA escolheram Olodum, Maragareth Menezes, Alcione, Vanessa da Mata, Alexandre Pires para que apresentassem a música brasileira. Não se buscou representar o som regional do Centro Oeste ou do Sul do país, por exemplo. Ninguém tentou abrir uma investigação por causa disso.
Se a desculpa pela preeminência de figuras negras entre os artistas selecionados se dá por causa da realização do sorteio na Costa do Sauípe, na Bahia, não custa lembrar que a população cabocla é tão ou mais significativa no Centro Oeste, Norte e Nordeste do país quanto a de pretos e mulatos. O IBGE usa uma classificação com cinco “tipos raciais”: brancos, amarelos, negros, indígenas e...pardos. Os pardos incluem todos os mestiços, que são tradicionalmente designados no país com termos diferentes para se fazer referência à sua ascendência: mulatos, caboclos, cafuzos etc.
No Sudeste, o mestiço predominante é o mulato, e assim também ocorre em cidades de Goiás e em Recife e Salvador -- estas últimas foram capitais nordestinas muito marcadas pela importação de escravos africanos. Mas em muitas regiões -- Sul, Norte, Centro-Oeste e Nordeste --, um dos tipos mestiços mais comuns, quando não dominante, é o caboclo. Toda essa massa é ocultada pelas pesquisas oficiais de cor porque empurrados para o rótulo de ''pardos'', e este, por sua vez, é sinonimizado nas políticas públicas e na mídia com a figura do afrodescendente. Ou seja, segundo o discurso de certo movimento negro, só se é brasileiro típico se você possuir algum pé na África, pouco importando se esta ascendência africana é minoritária, irrelevante ou inexistente no fenótipo ou cultura de boa parte da população do país.
O problema se torna ainda mais nítido quando se sabe que grande parte dos autodenominados brancos no Brasil são mestiços e, principalmente, caboclos. Para a Cultura Amazônica, nordestina [o típico nordestino do sertão, da caatinga], campeira e pecuarista, do peão e do pequeno agricultor do interior, da viola, do catolicismo arraigado, as marcas do africanismo são ou pequenas ou subordinadas a outros elementos das raças matrizes que formaram o Brasil [3]. E ainda assim, o IBGE, a mídia, e as políticas públicas oficiais as impõem a todo este contingente populacional que se espraia pelo nosso território.
No fundo, a importação dos dilemas do movimento negro ianque para estas regiões da América provocaram, para além de consequências positivas cá e acolá para pretos e mulatos, mais um ciclo de dominação do Brasil cosmopolita e voltado para USA e Europa sobre o Brasil profundo, e um afastamento em relação a muito do que nos une e aproxima dos vizinhos sul-americanos, que tem herança fortemente indígena em sua constituição cultural e racial. [4]
Não podemos nos esquecer também que, se é verdade que não somos herdeiros culturais e raciais dos vikings, também é verdade que fomos colonizados por um povo branco e europeu [com pitadas aqui e ali doutros povos também brancos e europeus], que estabeleceu nestas florestas o cerne daquilo que em nós é civilização. Fingir que essa matriz civilizacional portuguesa, branca e católica-romana não existe é se tornar cego para a própria realidade que chamamos Brasil, que é, pra falar o óbvio ululante, herdeira da interiorização pela América Portuguesa de noções e esquemas de poder e sociedade lusitanos.
E aqui se insere a questão da política de cotas que tomou conta do país. Sou contra cotas baseadas no critério de raça por vários motivos, sendo o principal deles a apropriação das dita cujas por movimentos organizados, de matiz africanista, importados do estrangeiro, e que moldam não só o debate racial, como são também racistas, se não sempre em teoria, quase sempre na prática, o que tem consequência deletérias para diversos grupos brasileiros, que somem de vista em um verdadeiro ''apagão histórico-racial'', além de impulsionar uma ''americanização'' da forma como a sociedade brasileira se percebe.
Não falo do muxoxo de loiros da Barra da Tijuca, mas da sacanagem feita com caboclos e indígenas e do sufocamento do Brasil ibérico. Além disso, a abordagem racialista muitas vezes distorce o verdadeiro problema, que é a imensa concentração de renda do país, e que seria melhor combatida com um sistema de cotas fundamentadas em critérios sócio-econômicos.
O Brasil parece querer provar ao mundo que, com o tempo, é possível conhecer cada vez menos de si mesmo.
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[3] http://www.youtube.com/watch?v=pjiNMoh7L5Q Ver também Darcy Ribeiro na obra ''O Povo Brasileiro'': ''Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantemente brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e goiano. Tais características têm sido interpretadas, por vezes, como resultado de uma miscigenação continuada com grupos indígenas dos sertões. A hipótese parece historicamente insustentável em face da hostilidade que se desenvolveu sempre entre vaqueiros e índios, onde quer que se defrontassem. Disputando o domínio dos territórios tribais de caçadas para destiná-los ao pastoreio e lutando contra o índio para impedi-lo de substituir a caça que se tornara rara e arredia nos campos povoados pela nova e enorme caça que era o gato, os conflitos se tornavam inevitáveis. Acresce que a suposição é desnecessária, porque partindo de uns poucos mestiços tirados das povoações da costa --e aos quais não se acrescentou nenhum contingente imigratório branco ou negro -- teríamos, natural e necessariamente, pelo imperativo genético da permanência dos caracteres raciais, a perpetuação do fenótipo original. Tudo isso parece ser verdade. A antropologia, porém, nega a história, mostrando a cabeça chata enterrada nos ombros, que não pode vir do nada. É inevitável admitir que, roubando mulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o fenótipo típico dos povos indígenas originais daqueles sertões se imprimiram na vaquejada e nos nordestinos em geral.”
[4] Vide a influência do nheengatu como língua geral da América Portuguesa até o século XVIII, e que está na base de boa parte do modo de falar do ''caipira'': ''Caipira é aquele que fala o dialeto caipira. É português, mas com palavras tupi e sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século 18. Seu nome parece coisa de índio, e é. O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. Na verdade, até hoje, quem se refere ao Ibirapuera, fica jururu, come abacaxi ou se pendura num cipó está se expressando nessa língua. Há algum tempo, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso usou a expressão "chega de nhémnhémnhém", estava falando puro nheengatu. No Brasil Colônia, era falada fluentemente em uma grande área do País, que ia de Santa Catarina ao Pará. A elite também se expressava por meio dela, embora não em todos os setores. Durante os processos, o juiz dispunha de um intérprete. "Tivemos uma língua brasileira até o século 18", diz o professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP. "Só os portugueses, que eram estrangeiros, falavam português." A língua foi criada no século 16 pelos jesuítas, destacando-se o Padre Anchieta. O fundador de São Paulo era lingüista. Para se entender com os nativos, classificou o tupi e criou uma gramática da língua geral. Ou seja, o nheengatu. "Uma língua de travessia, não é português, nem índio, eram ambas", diz Martins. O português, nesse caso, era o que hoje chamamos arcaico. Convidava-se uma dona para uma função, em vez de uma senhora para um baile. E dizia-se coisas como agardece (agradece), alevantá e inorância. Os índios tinham dificuldade em falar palavras portuguesas como os verbos no infinitivo. E também palavras com consoantes dobradas (rr) ou terminadas em consoante. Além disso, colocavam vogal entre consoantes. Mulher, colher e orelha viraram muié, cuié e oreia. De sua dificuldade com o "erre", vem o "pooorta", reflexivo, com a língua tocando o céu da boca. Martins esclarece que "o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal". Mais do que isso: "É uma invenção lingüística musical e social." Os brasileiros viviam muito bem com ela, até que, no reinado de d. José I (1750 a 1771), Portugal a proibiu. O veto veio em um decreto do primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Bania o ensino do nheengatu das escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo continuou falando no dialeto caipira. O tempo acabou por impor o português, mas o dialeto puro resiste. Ainda é falado em alguns pontos da fronteira com o Paraguai. E, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a 860 quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua co-oficial do município. Na contramão do decreto do marquês, determina que seja incentivado seu ensino nas escolas, e o uso nos meios de comunicação (o tucano e o baniva também se tornaram línguas co-oficiais). E ficou o "caipirês" da roça. Por essas bandas, ensina Martins, a língua se multiplica. "Quando o novo aparece, o caipira inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele." Há certo tempo, Martins e um grupo de estudantes apresentaram questões a algumas pessoas. Perguntaram a um homem: "Você concorda ou não concorda?" O homem não entendeu. A pergunta foi sendo repetida, sem sucesso, até que um dos estudantes mudou a forma: "Você concorda ou disconcorda?" Deu certo.'' [http://www.estadao.com.br/.../impresso,sotaque-vem-do...]
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