Observação: publicado originalmente como "El derecho a la defensa de la obra de Gilberto Freyre" (El Trapezio, 6 dez. 2023). Tradução de Uriel Araujo
Estas investigações sobre Freyre ajudarão a fortalecer o diálogo e a estreitar as relações entre comunidades de pensamento e entre países do âmbito sul-americano, latino-americano, ibero-americano e iberófono, sob a liderança do Brasil, trazendo à luz assim o papel central do mundo ibérico como a primeira modernidade frente à segunda modernidade - e como certos valores aristocráticos do personalismo ibérico, presentes na cultura popular, podem ser úteis para um futuro menos acelerado e mais humano
Há poucos dias comemorou-se o 90º aniversário da obra-prima do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre: "Casa-Grande & Senzala". Esse livro revolucionário nasceu num nada inocente Primeiro de Dezembro. Outra data freyreana de interesse é o 28 de outubro de 1606, quando foi fundado o Convento de Santo Antônio do Recife. No seu 350º aniversário, em 26 de outubro de 1956, Freyre proferiu uma conferência sobre a civilização lusotropical e iberotropical na época da monarquia hispânica dos Filipes, que nasceu - com toda a sua legitimidade - em 16 de abril de 1581. Tudo isto está em seu esquecido livro A propósito de frades, no qual o autor reflete sobre a experiência franciscana no Brasil a partir de uma decisão de Filipe I de Portugal (II da Espanha). Portanto, nos mundos freyreanos, é perfeitamente possível celebrar uma parte importante do período filipino, sem negar a legitimidade da restauração da independência por não cumprimento dos compromissos de Tomar. É perfeitamente coerente. Contudo, mesmo que fosse flagrantemente paradoxal, não só não deixaria de ter interesse para Dom Gilberto, como na verdade isso lhe aumentaria o interesse.
Foi justamente a partir de Tomar, cidade templária e filipina, que iniciei o primeiro rascunho deste artigo sobre o surgimento, no Brasil, de um novo livro: "Compreender Gilberto Freyre" [Edições Sol da Pátria, 2023]. Por mais improvável que seja, esse trabalho coletivo, do qual pude participar com um artigo, é um exercício do direito de defesa da obra de Freyre. Em seu prólogo, Alexandre Sugamosto e Uriel Araujo afirmam que
“na data em que publicamos este livro, 2023, comemoram-se, portanto, dois acontecimentos essenciais relativos à vida de Gilberto Freyre: o centenário de seu retorno ao Brasil e os noventa anos de a publicação de sua obra-prima: Casa Grande & Senzala”
A minha contribuição para o livro baseia-se num perfil biográfico, nas relações de Gilberto Freyre com a Espanha e no processo de assunção, aprofundamento e extensão do seu iberismo.
Vale a pena - em todo caso - estudar tal legado porque o oposto só levaria a problemas compulsivos de identidade (ódio a si mesmo/vira-latismo) e à desorientação geopolítica
Os diferentes autores oferecem-nos diferentes interpretações de Freyre, do ponto de vista antropológico, hispânico, geopolítico e neobarroco, refletindo sobre a modernidade deste autor e abordando as controvérsias acerca de Freyre sobre o peso que tanto a harmonia quanto a violência racial têm em sua obra - durante o período da escravitude e também durante as transformações da sociedade brasileira, da pós-escravitude até a contemporaneidade.
Tanto pela permanente tempestade de insultos diários a Gilberto Freyre nas redes sociais quanto pelas justas e injustas críticas acadêmicas, sempre achei que era necessária uma defesa organizada e argumentada, até mesmo crítica, do legado intelectual de Gilberto Freyre. Individualmente, muitos de nós (freyreanos), nas redes sociais, nos debates acadêmicos ou políticos, nos tornamos advogados do diabo. Eu próprio, num dos capítulos do curso sobre Iberianismo Metodológico, abordei em profundidade o problema da democracia racial e do lusotropicalismo.
Hoje posso dizer que este livro e, por extensão, a jovem e corajosa intelectualidade do Sol da Pátria, fazem esse trabalho organizado de defesa e desenvolvimento do pensamento freyreano
Dependendo do contexto, a defesa de Freyre precisa saber equilibrar, de forma negociada, os excessos do moralismo e do maniqueísmo, e ainda compreender a sociologia da comunicação cultural inter-racial e interclasse - isto tudo sem apagar os conflitos de classe nem a violência. A historiografia dos conceitos, do tempo, da capacidade de agência dos sujeitos, do poder absoluto descentralizado ibérico e ainda a antropologia histórica ajudam-nos a compreender Gilberto Freyre. Entendendo isso, podemos valorizar toda a ancestralidade cultural dos brasileiros de hoje. Mesmo assumindo a hipótese equivocada de que Freyre teria feito apenas uma apologia do legado ibérico (quando, na realidade, defende todas as matrizes culturais brasileiras - talvez com ênfase proporcional ao seu legado real e ainda do ponto de vista dos vencedores), vale a pena - em todo caso - estudar tal legado porque o oposto só levaria a problemas compulsivos de identidade (ódio a si mesmo/vira-latismo) e à desorientação geopolítica. E fazê-lo não contradiz a relevância de continuar fortalecendo as narrativas melanísticas – como diria Freyre – com um propósito fraterno e justo para o presente, de um merecido resgate da memória indígena e afrodescendente. A questão colonial da América Ibero-Barroca (enriquecimento das elites locais e miscigenação) é muito diferente da situação da África colonizada dos séculos XIX e XX (Conferência de Berlim), algo que Freyre reconheceria nos anos 1980 também para a África portuguesa. E, obviamente, é muito diferente também da situação de apartheid dos Estados Unidos da América ou da África do Sul.
A Fundação Gilberto Freyre, nesse sentido, ajudou muitos pesquisadores e a Fundação Joaquim Nabuco, por sua vez, deu continuidade aos trabalhos do Seminário de Tropicologia e da Revista Ciência & Trópico, mas nunca houve a materialização da criação de um centro de pensamento freyreano (no papel, sim). Hoje posso dizer que este livro e, por extensão, a jovem e corajosa intelectualidade do Sol da Pátria, fazem esse trabalho organizado de defesa e desenvolvimento do pensamento de G. Freyre.
Estas investigações sobre Freyre ajudarão a fortalecer o diálogo e a estreitar as relações entre comunidades de pensamento e entre países do âmbito sul-americano, latino-americano, ibero-americano e iberófono, sob a liderança do Brasil, trazendo à luz assim o papel central do mundo ibérico como a primeira modernidade frente à segunda modernidade - e como certos valores aristocráticos do personalismo ibérico, presentes na cultura popular, podem ser úteis para um futuro menos acelerado e mais humano
Estou muito feliz que as pesquisas sobre um Freyre neobarroco e hispânico estejam avançando, assim como as pesquisas sobre Casa-Grande & Senzala e Ordem e Progresso. Os livros Ordem e Progresso e O escravo nos anúncios de jornal brasileiros do século XIX trouxeram para o Brasil os novos métodos das ciências sociais. O primeiro o fez através de pesquisas e o segundo, utilizando jornais como fonte primária - algo que (quase) ninguém fizera no Brasil, entre seus contemporâneos.
Estas investigações sobre Freyre ajudarão a fortalecer o diálogo e a estreitar as relações entre comunidades de pensamento e entre países do âmbito sul-americano, latino-americano, ibero-americano e iberófono, sob a liderança do Brasil, trazendo à luz assim o papel central do mundo ibérico como a primeira modernidade frente à segunda modernidade - e como certos valores aristocráticos do personalismo ibérico, presentes na cultura popular, podem ser úteis para um futuro menos acelerado e mais humano.
Com toda humildade, permito-me dar conselhos a esses amantes do Brasil. É importante desenvolver uma moderação autocontrolada no nacionalismo, por mais defensivo que esta seja, porque pode carregar preconceitos de excepcionalismo. Comparado ao cosmopolitismo individualista anglo-saxão, o que é virtuoso é uma dose moderada de "etnocentrismo" – com vocação mixófila – e uma dose ainda mais contida de nacionalismo – um com vocação universalista e de aliança com o seu ambiente cultural. Aliás (sendo eu espanhol), recomendo uma dose clarividente – mas moderada – de Lusismo e Iberismo e uma dose ainda mais moderada – mas necessária – de Hispanismo, sem perder a perspectiva crítica.
Meus parabéns a todos os envolvidos nessa justa defesa do legado de Freyre. Meu desejo é que todos os freyreanos leiam também a obra do Freyre mais velho, menos conhecida, mas igualmente importante do ponto de vista teórico - por exemplo, "A propósito de frades", "O brasileiro entre os outros hispanos", "Além do apenas moderno" e "Insurgências e ressurgências atuais". E, obviamente, para iniciados e não iniciados, recomendo a leitura de "Compreendendo Gilberto Freyre". Segue o índice do livro: [Observação: o texto continua abaixo]
Compreender Freyre significa calibrar proporcionalmente o critério freyreano do equilíbrio dos antagonismos. Freyre não nega o equilíbrio nem os antagonismos, embora seja perfeitamente possível criticar uma insuficiência em um desses dois lados.
Alguns debates sobre o Ocidente e o Oriente permanecem pendentes: sobre se os protestantes roubaram de nós, ibéricos, o conceito de Ocidente (do Mediterrâneo); sobre se somos um outro Ocidente ou um lugar intermediário entre o Ocidente e o Oriente, dada a herança de al-Andalus, da África negra, da América indígena e dos antigos contatos comerciais e culturais dos Impérios Ibéricos com o Extremo Oriente (grande parte da prata americana foi vendida para a China).
Cada geração tem que fazer cuidadosamente um balanço material dos aspectos positivos e negativos da sua experiência histórica - eis tudo. O que acontece é que, em países hegemonicamente mestiços, deveria ser considerado – desde logo – um absurdo ser maniqueísta
Hoje é verdade que participamos, até certo ponto, do Ocidente e conhecemos bem o Ocidente porque consumimos muito e valorizamos alguns dos seus elementos, no quadro de uma crítica geral à modernidade burguesa vitoriosa.
Gilberto Freyre, por mais que aparentemente tenha revolucionado a historiografia brasileira e por mais que sua ideia tenha triunfado no âmbito político e cultural, não é um escritor bem visto pelos historiadores em geral ou pela Escola Sociológica de São Paulo, em particular. Freyre escreve História a partir de generalizações sociológicas baseadas no princípio do relativismo cultural boasiano, ou seja, faz história a partir da antropologia. E ele o faz num contexto que era de pessimismo nacional, um contexto que, de forma generalizada – na esfera intelectual e política – considerava a miscigenação como um elemento negativo que teria limitado o desenvolvimento do país. É contra tal hegemonia [racista] que Freyre se rebela. Lembremos também como foi tratada a questão da miscigenação nos Estados Unidos da América e na Alemanha. Obviamente, a visão de Freyre sobre a miscigenação é hoje insuficiente, mas, naquela época, ela serviu uma função contra o racismo explícito e científico, embora não tanto contra o racismo implícito. Com exageros e deslizes, podemos dizer também que cumpriu uma função razoável: criar uma interpretação do passado que não fosse desproporcionalmente negativa porque nenhum povo pode criar presente e futuro com um passado atormentado. Aqui, o princípio do relativismo cultural também é aplicado ao passado e aos ancestrais colonizadores e colonizados dos brasileiros. E isso vale também para todos os países, incluindo a Alemanha ou os Estados Unidos. Cada geração tem que fazer cuidadosamente um balanço material dos aspectos positivos e negativos da sua experiência histórica - eis tudo. O que acontece é que, em países hegemonicamente mestiços, deveria ser considerado – desde logo – um absurdo ser maniqueísta.
Um dos problemas do estudo da escravitude é que os especialistas nessa antiga instituição do Mediterrâneo não têm contacto com os estudiosos da escravatura atlântica. Nesse sentido, é necessário diferenciar as diferentes situações jurídicas - por vezes coexistentes - do negro de sua participação na construção histórica (econômica, social e cultural) do Brasil, isto é, de sua própria agência (capacidade de criar civilização e civilizar), que [em alguma medida] independe do regime em que viveu. Mesmo quando os últimos escravos se tornam cidadãos, paradoxalmente adquirem, naquele mesmo momento, um papel menor na vida social, entre outros motivos, pela chegada da migração europeia, num quadro em que esta avança na estrutura social e, assim, empurra para baixo a população negra, no contexto do branqueamento eugênico como ideia muito popular durante a República Velha brasileira - send também assim em outros países americanos.
No próprio livro "Sobrados e Mucambos" (Capítulo XI: Ascensão do bacharel e do mulato) e no livro de Mary Del Priore ("À procura deles: Quem são os negros e mestiços que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a história do Brasil") , confirma-se a proeminência de uma intelectualidade negra durante o Império. De modo geral, sob uma certa perspectiva paternalista, Gilberto deixa a negritude em devido lugar, principalmente quando comparado a autores da sua época. Por outro lado, Gilberto Freyre não só é contraditório, como se vangloriava de o ser, porque a realidade também era contraditória. A realidade é paradoxal. Ele preferiu ser leal à realidade em vez de leal a uma hipotética coerência hiper-racional. Freyre elogiou amplamente o Quilombo dos Palmares e o abolicionismo de Joaquim Nabuco. Por isso, é preciso ter cuidado ao fazer generalizações quando descrevemos o mestre de Apipucos.
Quem estiver em São Paulo e tiver interesse em uma análise fina da obra de Freyre está convidado para este evento de apresentação do novo livro no dia 9 de dezembro de 2023 [Observação: há outros lançamentos sendo planejados em outros locais do Brasil]. Nosso sonho é o Brasil; nossa utopia é o Brasil.
Pablo González Velasco – Brasilianista espanhol, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca, coordenador de ELTRAPEZIO.EU e especialista em iberismo e neobarroco, bem como na vida e obra de Gilberto Freyre e Américo Castro. Possui um blog chamado “Observatório de Geopolítica Panibérica”.
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