O racismo biológico europeu chegou com força no Brasil da segunda metade do século XIX, se mesclou com a hierarquia social herdada da escravidão, e nutriu as ideologias que impulsionaram a derrubada da Monarquia e a consolidação da República. O estudo sobre as questões raciais do país fez com que nossos intelectuais criassem alternativas que acreditavam estar fundamentadas em nossa história social e particularidades civilizacionais.
A mais bem sucedida delas ficou conhecida como escola culturalista, ou escola "baiana", ainda que seu principal nome fosse o pernambucano Gilberto Freyre. Sua obra se adequou com perfeição ao espírito dos tempos e à agenda política da Era Vargas, transformando-a no paradigma predominante por pelo menos duas gerações, e uma referência que ultrapassava em muito o campo intelectual e praticamente se imbricou, em algumas de suas perspectivas, com a própria ideia de brasilidade.
Vem daí, por exemplo, a valorização de um Brasil mestiço e capaz de, a partir de seus próprios parâmetros civilizacionais -- ibéricos/norte-africanos, católico-romanos, sensuais etc. -- escapar do racismo rígido e segregacionista do mundo europeu e, mais particularmente, anglo-saxão. Nesse sentido, o Brasil ficaria "bem na fita" quando comparado aos EUA, à África do Sul ou à Rodésia, países de colonização inglesa. Um dos aspectos dessa valorização era o ''mulatismo'' ou ''morenidade'', isto é, a tendência popular de enfatizar a ''cor morena'' em um sistema de classificação que supera, em muito, o conceito de pardo utilizado pelo IBGE, já que grande parte dos brancos e dos pretos também se incluem na categoria de ''morenos''.
A abordagem culturalista não satisfazia, no entanto, uma gama de pensadores marxistas que tinham posição central no Sudeste e irradiavam suas ideias a partir da USP, universidade criada pela elite paulista derrotada militar e politicamente pelo getulismo nos anos 1930. Florestan Fernandes é considerado o nome fundador dessa escola ''uspiana'' ou paulista, que se tornou hegemônica nas universidades a partir dos anos 1960, e que, a partir desta posição, conquistou a esquerda política. O Movimento Negro Unificado [MNU], fundado em São Paulo em 1978 e dominado por ativistas da Convergência Socialista [de viés trotskista], se tornou um braço político desta ordem de ideias difundida a partir da USP.
A escola paulista construiu seu caminho atacando a obra de Gilberto Freyre. Para isso utilizou como espantalho o "mito da democracia racial", que atribui caluniosamente ao intelectual pernambucano, retratado como um sujeito que considerava a escravidão brasileira ''branda'' ou até ''benéfica''. A difamação criou uma legião de militantes que, mesmo sem ler a obra de Freyre, a rotulavam como "racista" -- ironia perversa, já que a principal consequência do culturalismo foi a de enterrar as teorias racistas que predominavam no Brasil. A estratégia destes marxistas foi facilitada pelo fato de Freyre ser um conservador que se aproximou das agendas políticas do Estado Novo português. E, assim, uma disputa que se pretendia acadêmica e intelectual era movida, na verdade, por uma luta política-ideológica, bem ao gosto da ''sociologia militante" de Florestan.
A escola paulista e o MNU, modelados pelas dicotomias marxistas, são as forças motrizes por trás do ímpeto de retratar o Brasil como um país bi-racial: o Estatuto da Igualdade Racial do governo Lula constrói a categoria de ''negro'' por meio da soma da autodeclaração de pardos e pretos nas pesquisas e censos do IBGE. A militância, bem estabelecida em órgãos do Estado como o Ministério da Igualdade Racial, e protegida pela legislação, usa truques semânticos para transformar a nova categoria de "negro" em sinônimo de afro-descendente, numa imitação canhestra do critério do one drop rule que rege o sistema de classificação racial norte-americano: qualquer sinal de ancestralidade não-europeia tornaria o sujeito em filho de uma suposta "diáspora africana" nas Américas, mesmo que ele no fundo seja um caboclo amazônico.
Para parasitar e eclipsar a existência de caboclos, mamelucos, morenos, pardos cafuzos, curibocas etc. (em um verdadeiro apagamento histórico e estatístico denunciado por intelectuais como Manolo Florentino, Antônio Risério e José Murilo de Carvalho), o marxismo da escola paulista tem de empreender um combate ferrenho à figura do mestiço e à própria ideia de mestiçagem que se tornaram centrais na identidade brasileira. A mestiçagem teria, na verdade, origem ''genocida'' [''estupro coletivo'' etc.] e sua reprodução atual seria uma falha ética e política. A expressão mais radical dessa ordem de ideia é o veto moral ao relacionamento amoroso entre negros e brancos, rotulado de ''palmitagem".
A negação do mestiço e da mestiçagem tem sua explicação em uma característica fundamental do pensamento marxista: a sociologia do conflito que norteava a produção de seus principais intelectuais faz do negro o agente revolucionário por excelência. O racismo seria, no fundo, uma manifestação global da luta de classes, difundido no mundo pelo imperialismo europeu e norte-americano, e portanto atrelado à ''infra-estrutura econômico-social''. Ou seja, o ''negro-classe'' substitui o proletariado como ator que conduziria ao fim da dominação burguesa por meio de uma derrubada violenta da estrutura social da ordem capitalista. A luta antirracista é, para esta intelectualidade e militância, uma senha para a utopia comunista, construída pela figura abstrata do "negro global", em torno do qual se levantou toda uma mitologia de ordem histórica, sociológica e geopolítica.
O conceito de racismo estrutural difundido por Sílvio de Almeida é uma expressão recente desta nova roupa do revolucionário marxista, e caiu no gosto da militância de esquerda, que reproduz a hipótese como se fosse teoria consensual das ciências humanas. Para Sílvio de Almeida, a sociedade é modelada por estruturas racistas. Para além das intenções dos indivíduos e do arcabouço jurídico que rege as instituições, há um estrato profundo, inscrito nas relações econômicas e sociais, que reproduziria cotidianamente o racismo, que é assimilado aqui à própria ideia de desigualdade e exploração de classe.
Este estrato profundo, esta infra-estrutura por assim dizer, mantém o branco no poder por meio de mecanismos que não são explicitados e provados na teoria, mas que implicam, em tese, na impossibilidade de que negros cometam racismo, já que se trata, em última instância, de uma estrutura sócio-política, e não apenas de um ato individual. Daí porque se popularizou na militância de esquerda o repúdio ao que chamam ironicamente de ''racismo reverso'' quando confrontados com atos de ódio racial cometidos por negros. Ora, não há espaço nesta teoria para o racismo cometido por negros, o que implica em transformar as leis contra o racismo em um instrumento contra brancos -- no jargão marxista, em um instrumento de classe. É óbvia a tentativa de vender uma sociologia e uma agenda marxista por trás dessa tese ''antirracista''.
É parte integrante do marxismo do ''negro-classe'' um conjunto imenso de ideias a-históricas, cujo conjunto forma quase que uma religiosidade sectária, defendida de modo ferrenho com métodos copiados de organizações dedicadas à violência revolucionária, mas readaptados ao mundo das redes sociais -- cultura do cancelamento, expulsão de adversários de espaços públicos, reivindicação de submissão pública por meio de atos de humilhação que copiam os autos de fé do início do mundo moderno. Esta religiosidade sectária, uma cosmovisão articulada em torno da figura do ''negro-classe-global'', construiu uma África imaginada [isenta de escravismo, patriarcalismo, opressão social, hierarquias etc], continente-utopia cujas máculas seriam responsabilidade do europeu-branco-burguês, satanizado como a força sinistra por trás de toda a história. O europeu-branco se torna o novo Caim mitológico e dá início a seus crimes roubando a sabedoria do Egito e a vendendo como filosofia própria na Grécia e depois do mundo helênico [em versões matizadas do mito, a filosofia do branco eclipsa e anula à força os saberes do negro-classe-global, que passam a ser vistos como folclores ou superstições, sem legitimidade social]. No Brasil, o mito afrocêntrico fez de Zumbi dos Palmares e da Revolta dos Malês símbolos de luta antirracista e anti-escravista, e da Princesa Isabel uma hipócrita manipuladora dos interesses de sua própria classe, em uma inversão que seria incompreensível para abolicionistas como José do Patrocínio. A lenda de que a escravatura terminou no país por causa da resistência do negro-classe oprimido é veiculada pela imagem do quilombo como símbolo de luta revolucionária, organização de luta popular, e ao mesmo tempo a reencarnação da África fantasia. O quilombo é o novo soviete.
Uma das tentativas mais recentes de dar respeitabilidade a essa mitologia está na obra do sociólogo Jessé de Souza, que embora seja um emulador de Bourdieu e Charles Taylor, tenta justificar e dar razoabilidade à tese do racismo estrutural, e ao mesmo tempo ressignificar o culturalismo de Freyre, fazendo das igreja cristãs as instituições que explicam a difusão do racismo. O agostinianismo traria em seu cerne um verdadeiro ''platonismo vulgar'', cuja hierarquia entre logos/nous e paixões/corpo forneceria a gramática do ''racismo universal''. Apesar de suas invectivas contra o ''identitarismo de esquerda'', a obra de Jessé de Souza se adequa perfeitamente, portanto, à ideologia marxista do "negro-classe", que defende uma revolução total contra o branco, o Ocidente, o cristianismo, o logocentrismo, o patriarcalismo, e o capitalismo.
A cosmovisão sectária do novo marxismo exige do fiel ativista uma praxis revolucionária que consiste em manifestar a África-fantasia em seu cotidiano. A intenção é ''recriar'' ou ''revitalizar'', quase que de modo mágico, a suposta ancestralidade que foi reprimida pela cultura europeia-branca-burguesa dominante: o ativista tem de ser candomblecista e, ao mesmo tempo, negar o sincretismo; tem de adotar nomes africanos, vestimentas e produtos que o vinculem à origem ancestral em grande parte inventada; tem de cantar jongo e dançar capoeira, aprender iorubá etc. A praxis caricatural do novo revolucionário criou, paradoxalmente, um mercado de produtos para "negros" que é explorado por jovens de classe média, de A busca por etnicização/racialização da militância se fundamenta no mito da África-fantasia e de sua diáspora mundial em luta contra o europeu-branco-burguêstez morena [branca ou parda], e com tendências socialistas. É até possível dizer que uma das principais consequências da política de cotas na Nova República é dinamizar e retroalimentar esse nicho de mercado.
O marxismo do negro-classe se vinculou ao identitarismo mais radical de matriz ianque, conhecido também como ''ideologia woke'' ("uôuqui"), que busca fazer tabula rasa da história [uma de suas manifestações típica é o ataque a monumentos que, segundo essa leitura canhestra, celebram a ''memória coletiva racista'', ou então o veto e censura ao cânone filosófico, literário e artístico ocidental] e reformular os parâmetros culturais por meio de remodelação da linguagem cotidiana. Segundo eles, há uma forma de se expressar que flagra uma imaginação e perspectiva racista. Uma vez pronunciada, essa linguagem recria demiurgicamente a sociedade opressora. O controle da linguagem e do imaginário é vital para a construção de um novo homem, escopo perene da militância marxista, e que adotou diversas roupagens no último século, mas que nunca abandonou seus tons totalitários.
Uma das grandes contradições do movimento marxista do negro-classe é que ele pouco preocupa o topo da hierarquia social. Mais das vezes, são financiados por instituições e organizações estrangeiras, abraçados pelo mundo corporativo e pelo establishment financeiro. Seus militantes tem origem na alta classe média e seus agregados ideológicos. E seus principais alvos no mundo real são justamente as classes populares que se consideram mestiças e cristãs. O marxismo do negro-classe é, no fundo, uma engenharia social reivindicada por uma elite social [classe média universitária] e moldada por agendas desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos, financiada por grandes corporações empresariais, e que move uma guerra cultural contra as classes populares com o intuito de ''exorcizá-las'' e libertá-las dos elementos que formaram sua identidade [mestiçagem, religião cristã, sincretismos culturais etc.].
A revolução marxista nunca é o que diz ser.
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