O Ocidente precisa morrer
- Paul Kingsnorth
- 1 de jul. de 2023
- 7 min de leitura
O problema de escrever um ensaio é o efeito que isso tem na cabeça da gente.
Todo escritor dirá que existem diferentes tipos de escrita. Diferentes tipos de escrita vêm de diferentes maneiras de ver, de se relacionar, de mergulhar na realidade ou de compreender. Isso é muito difícil de explicar, difícil de sentir de forma palpável e é por isso que escrevemos. Escrevemos para alcançar o impossível, mas é impossível alcançar. Se tivermos muita sorte, o melhor que podemos fazer é nos debatermos com nossas palavras, como um homem que está se afogando - tentando escapar da areia movediça agarrando-se à margem.

Escrever ensaios, por mais criativo que você tente ser sobre o processo todo, envolve uma tentativa de afixar o mundo numa folha de papel como se com uma borboleta capturada. Requer um processo de simplificação, de esclarecimento; requer explicação. Isso não é necessariamente uma coisa ruim. Um ensaio é como um mapa: espero que descreva a paisagem razoavelmente bem e que possa ajudar a apontar a direção certa. Contudo, o processo de fazer mapas não é o processo de fabricação de vidro ou o processo de escrever poesia. Nunca consigo escrever poemas quando estou escrevendo ensaios. As duas formas são como óleo e água; elas nunca se misturam porque vêm de lugares totalmente diferentes. Ensaios são feitos: são construídos ao longo do tempo, como paredes de pedra. A poesia chega: cai do céu como orvalho e adquire forma conforme escorre pela página. Isso é muito difícil de explicar.
Mas aqui estou, ainda escrevendo ensaios sobre a forma das coisas, ainda tentando afixar na página o mundo como ele é. Assim que você o afixa, ele escapa do seu alcance, mas isso é vida e não é totalmente inútil fazer isso, espero. Só preciso lembrar - e você, leitor, também deve se lembrar - que o mapa não é o território. Tem um limite para aquilo que as palavras podem fazer. Escritores são criaturas limitadas. É necessário que às vezes a gente saia por aí, pisque os olhos, suje as mãos e permita que as pessoas não entendam mesmo o que estamos falando. É necessário tropeçar, levar um tombo e ser ridicularizado. Isso nos mantém honestos.
De manhã, saí cedo para rezar debaixo da copa das árvores. A luz do sol descia por entre as bétulas. Os insetos já estavam ocupados há horas. Ainda estava frio. Toda oração deveria ser assim. Tal como ocorre com a poesia, nada é criado aqui. Alguma coisa chega, se você tiver sorte, algo é oferecido. Você vagueia sob o sol frio da manhã, e esta é a vida também - uma boa descrição dela, talvez. Às vezes, os ensaios que escrevemos podem encobrir os tropeços e as divagações. Todo o nosso mundo hoje parece que foi construído para evitar qualquer, qualquer divagação. Ninguém quer se perder. Evitar que a gente se perca: é para o que serve a Máquina. É por isso que gostamos. E é isso que, pedaço por pedaço, dia após dia, palavra por palavra, está nos matando lentamente.
Trocar o sentido das coisas pelo controle: o acordo era esse. Troque a beleza pela utilidade; as raízes pelas asas, o todo pelas partes; a perdição, a errância e o tropeço pela marcha reta em direção à meta. Esse era o acordo. Acontece que era uma armadilha, e agora olhe só para nós. Olhe para tudo o que sabemos - e como vemos tão pouco. Olhe para nós aqui, nos debatendo, nos afogando, ofegantes enquanto afundamos nos números e nas palavras.
Como vamos sair disso?
Uma das razões pelas quais comecei esses ensaios, dois anos atrás, era que eu queria entender o que estava acontecendo com as “guerras culturais” que assolavam o Ocidente. Tendo sido, eu mesmo, pego no fogo cruzado, eu queria saber por que essas lutas aconteciam, de onde vinham essas divisões, por que as coisas pareciam estar se fragmentando tão rápido. Desde que comecei a escrever, essa fragmentação só se tornou mais rápida, mas eu ainda penso agora o que pensava naquela época: que a guerra pela cultura é uma manifestação superficial de uma divisão muito mais profunda na psique dos ocidentais modernos. Guerra culturais e lutas pela cultura só acontecem quando não temos mais cultura.
Mas as guerras culturais continuam, e hoje, como antes, os campos seguem bem definidos.
De um lado, a tribo 'desperta' ou woke* (aquela curiosa combinação de capital internacional e opinião progressista de elite posando, se fazendo passar por uma revolta que vem de baixo): esta tribo trabalha para inverter a cultura enquanto trava uma cruzada, em todo lugar, contra tudo que aquele lugar já foi ou representou.
Em resposta, a tribo 'based' se levanta para 'defender o Ocidente', mas nunca consegue concordar sobre o que está defendendo. Afinal, o que é esse “Ocidente”? É uma pátria étnica, uma religião, um conjunto de princípios, um determinado modelo econômico ou social ou ainda alguma outra maneira específica de ver o mundo ou de existir? Ninguém parece conseguir chegar a um consenso.
Observando a demolição em andamento dos pilares de minha cultura, às vezes, quando estou no meu pior humor, fico tentado a me juntar aos defensores do Ocidente, na empreitada deles. Mas, quando eu me acalmo, lembro-me de que esses pilares estão quase todos podres de qualquer maneira, e aqueles que atacam esse pilares podres, por mais repulsivos que às vezes possam ser, também não estão totalmente errados. Algo deu errado com este 'Ocidente', e aqueles que destacam os crimes do Ocidente estão percebendo alguma coisa que talvez nem eles consigam identificar bem.
Como escritores ensaístas tentando chegar ao cerne da questão ou poetas lutando para colocar seus versos no papel, às vezes pode parecer que todos os descontentamentos em nosso colapso contínuo (onde quer que eles pensem que se posicionam) são motivados pelo mesmo sentimento de perda ou confusão que a modernidade da Máquina criou ao nos arrancar de nossas raízes.
Os populistas de direita (que se revoltam contra “insetos” e “casulos”** - bugs and the pod - porque não querem “comer insetos” nem “morar em casulos”) e, de outro lado, os rebeldes da esquerda-verde do Extinction Rebellion*** (que param o trânsito porque querem parar a Máquina) são rotineiramente apresentados como sendo opostos, contudo me parecem ambos manifestações da mesma frustração.
Os progressistas que protestam contra a 'brancura' (branquitude) e os tradicionalistas que se recusam a ficar confinados em uma “cidade de quinze minutos”**** estão estranhamente em consonância, assumindo uma posição contra a mesma coisa: um futuro racionalizado, lucrativo e desumano, que eles sentem que está cercando-se sem deixar nenhum espaço para fuga.
Portanto, se alguém me pedir para eu ajudar a 'defender o Ocidente' agora, responderei que, embora este lugar seja meu lar e o lar de meus ancestrais, eu não posso ignorar a realidade de que esse 'Ocidente' deu origem à Máquina e está construindo um futuro desumano. Algo em nosso modo de ver as coisas já continha uma semente. Essa semente desfez o mundo. Eu tenho examinado essa semente faz dois anos. Eu quero que ele brote? Não. Eu quero erradicá-la. Afirmo que esse ‘Ocidente’ não é uma coisa a ser ‘conservada’: não agora. É algo a ser superado. É um albatroz enrolado em nosso pescoço. É algo que obstrui nossa visão. É um fardo.
Às vezes, a gente precisa largar mão.
'O Ocidente' tornou-se um ídolo; um tipo de imagem estática de um passado que talvez até já existiu, mas agora é habitado por uma nova força: a Máquina. O ‘Ocidente’ hoje pensa em números e palavras, mas não pode escrever poesia para salvar sua própria vida. ‘Ocidente’ é o reino de Mammon. “O Ocidente” come o mundo e come a si mesmo, para que continue a “crescer”. O ‘Ocidente’ sabe o preço de tudo - e não sabe o valor de nada. 'O Ocidente' está exausto e vazio.
Talvez, só talvez, precisamos deixar "o Ocidente" morrer.
Que ele morra para que nós possamos viver.
Talvez seja a hora de deixar esse conceito de lado: deixá-lo desmoronar para que possamos ver o que está por baixo; parar toda a 'luta' para preservar algo que ninguém pode definir, algo que há muito perdeu o coração e a alma; parar de se agarrar ao casco, afundando, enquanto a banda toca. Já batemos no iceberg há muito tempo; deve ser a hora, finalmente, de parar de se agarrar ao metal em movimento; hora de soltar e começar a nadar, em direção ao local onde o brilho da luz parece brincar, refletido na água. Bem ali. Está vendo? Mais além; um pouco além. Há algo esperando lá fora, mas é preciso um golpe para alcançar. É preciso largar mão.
Sobre questões ambientais, leia também “Nacionalismo, indigenismo e a Grande Síntese”.
Notas e comentários do tradutor:
*: Nos países de língua inglesa, os “despertos” ou woke são progressistas (que “acordaram” e viram a injustiça do sistema) e os based seriam conservadores que se opõem ao identitarismo woke e ao politicamente correto. Ambos são grupos que se vêem como tendo acordado de uma ilusão. Os based seriam análogos aos red-pilled (aqueles que tomaram a “pílula vermelha”, em alusão ao filme Matrix, ou seja, aqueles que “despertaram” e viram a suposta “realidade” em relação ao Sistema, só que de um ponto de vista em geral “de direita”). No Brasil, existe uma dicotomia parecida: de um lado, aqueles que lacram (progressistas) e, de outro, aqueles que mitam (direitistas) - como se vê nas interjeições “lacrou!” e “mitou!”
** Alusão a discursos comuns no meio populista de direita contra o ambientalismo e contra a suposta agenda do “Great Reset” do Fórum Econômico Mundial. Um meme famoso nesses meios continha a legenda “You will NEVER make me get in the POD and eat the BUGS” (“Nunca me farão viver num casulo e comer insetos”).Exageros à parte, existe hoje uma fusão entre certas tendências ambientalistas e o neoliberalismo, num modelo de “capitalismo verde” bastante pernicioso - isso, porém, não tira o mérito da causa ambiental em si.
*** Alusão ao grupo ambientalista radical Extinction Rebellion, cuja sede fica no Reino Unido.
**** “Cidade de quinze minutos” é um conceito urbano, atribuído ao cientista político franco-colombiano Carlos Moreno, que se refere a cidades a cidades ou bairros no quais um morador consegue atender suas necessidades diárias a pé ou de bicicleta: seriam cidades formadas principalmente por “bairros de cinco minutos”, também chamados de “bairros caminháveis”, que seriam comunidades “completas”. O conceito está relacionado à ideia de um retorno a um modo de vida mais comunitário e local.
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