A data de 19 de abril foi instituída como Dia do Índio no Brasil em 1943 por Getúlio Vargas em referência ao Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido na mesma data em 1940, no estado mexicano de Michoacán. Desde o ano passado a data passou a se chamar oficialmente de Dia dos Povos Indígenas.
Muito será falado, dito e lembrado neste dia em que se busca refletir sobre o passado, presente e futuro dos povos indígenas. A nós, brasileiros, cabe refletir sobre o quão indígena é o nosso país, uma vez que respeitar os indígenas é também respeitar a herança indígena no nosso povo e na cultura brasileira. Ser brasileiro por inteiro significa valorizar as nossas referências culturais e reconhecer o indígena como parte fundamental da formação nacional.
Embora tenha havido, sim, guerras de extermínio, escravidão e diferentes formas de apagamento e aculturação durante um processo colonial violento, nem tudo pode ser resumido a isso. O processo colonial foi bem mais complexo do que brancos europeus com armas de fogo matando e estuprando indígenas.
É por esta razão que, neste texto para a Frente Sol da Pátria, irei abordar, ainda que de maneira breve, algumas instituições e políticas indígenas que foram determinantes no processo de formação social e política do Brasil.
1. O ‘Outro’ na concepção indígena
Um tema recorrente na antropologia brasileira é o aspecto intrigante de como a identidade de muitos povos indígenas se dá pela via da assimilação do ‘Outro’. O exemplo extremo desta assimilação se dá pela antropofagia – quando essa assimilação se dá da maneira mais radical. Contudo, existem diferentes gradações neste aspecto. Ao usar as penas de uma arara ou o couro de uma jiboia ou de uma onça, há ali um sentido explícito de adquirir ou assimilar aspectos reverenciados daquele animal. O mesmo se dá em relação aos inimigos de outro povo. Este ‘Outro’ na concepção indígena é objeto de admiração: deseja-se possuir seus atributos. É de se supor que os portugueses vindos de um lugar longínquo no além-mar tenham inspirado sentimentos desta natureza.
2. O Cunhadismo
Um dos pontos fundamentais para melhor se compreender a formação social, cultural e étnica do povo brasileiro, é o Cunhadismo. Trata-se de uma instituição familiar indígena em que os irmãos da esposa – os cunhados, tornam-se aliados de guerra e de trabalho. Foi esta instituição que tornou possível as primeiras alianças de guerra contra invasores franceses, holandeses e ingleses, estes por vezes aliados a outros povos indígenas.
Foram estas alianças matrimoniais que de fato tornaram possível o estabelecimento do homem ibérico no Brasil e destes casamentos surgiram os primeiros brasileiros de fato: os caboclos.
3. Alianças de Guerra
Guerras entre povos indígenas já eram comuns antes da chegada dos europeus. Para os povos indígenas do litoral sobravam poucas opções a não ser se aliar a um lado ou outro da guerra entre portugueses, franceses, holandeses e ingleses. Nas guerras travadas contra povos considerados inimigos, sempre houve indígenas nas fileiras luso-brasileiras. Ou seja, as guerras travadas eram também guerras entre povos indígenas, que muitas vezes nutriam inimizades anteriores à chegada dos europeus. É bem verdade, contudo, que com as armas e táticas luso-brasileiras estas guerras ganharam outra escala de violência, inédita até então. Porém, é igualmente verdade que indígenas receberam patentes e status de heróis por vencerem estas guerras para a coroa portuguesa.
4. Extermínio ou Assimilação
A concepção de que mais de 90% da população indígena do Brasil tenha sido exterminada não leva em consideração o intenso processo de assimilação. Embora desde 1500 o número de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10% do original – de cerca de 3,5 milhões para 325 mil –, o número de pessoas com DNA mitocondrial ameríndio aumentou em cerca de dez vezes.
5. Cunhados: aliados e inimigos em potencial
Voltemos mais uma vez ao papel do cunhado em potencial, ou seja, aquele que se pode casar com uma irmã ou cuja irmã pode ser a esposa. O cunhado em potencial é aquele que não se insere no grupo familiar, pois, se assim o fosse, não seria possível desposar-lhe a irmã. Assim sendo, o cunhado em potencial é tanto inimigo em potencial quanto aliado em potencial. Esta forma de ver o mundo e as alianças, ou melhor, a forma como as sociedades indígenas se abrem para o mundo, foi determinante para a formação das alianças que permitiram a expansão para o interior da identidade brasileira em sua formação.
6. O ‘Amansamento do Branco’
Muito se fala sobre o processo de ‘amansamento’ a que teriam sido submetidos os povos indígenas, sobretudo por meio da religião e de presentes. Contudo, é tema mais ou menos recorrente na antropologia o de que há também um processo contrário de amansamento dirigido a partir dos indígenas para os demais formadores da sociedade brasileira. Trata-se de uma maneira de socializar o branco, de torná-lo de algum modo mais aceitável à sua própria sociabilidade. Este é um processo ainda em pleno vigor. Os indígenas lançam mão de todas as ferramentas que lhes são disponíveis para alcançar a sensibilidade do não-indígena desde alimento, música e ritualidade.
Estas são algumas concepções políticas, se assim queiramos chamá-las, que os indígenas desenvolveram em sua relação com os não-indígenas ao longo da nossa história.
Longe de querer diminuir o impacto da empresa colonial ou negar seu efeito nefasto sobre centenas de povos indígenas, este breve apanhado tem por objetivo tentar demonstrar que os povos indígenas não foram, e não são, apenas vítimas da história, mas protagonistas conscientes, que lidaram com circunstâncias bastante adversas e que muitas vezes lograram êxito. Do mesmo modo, buscamos demonstrar de modo despretensioso o quanto o nosso Brasil deve da sua formação social aos povos indígenas.
Como nos ensinou Darcy Ribeiro, não somos um povo transplantado: nunca fomos uma cópia de Portugal, mas um povo novo profundamente marcado pelas formas de sociabilidade indígenas que até hoje determinam nosso modo de ser e de viver.
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