Texto originalmente publicado por Arnaud Bertrand, em seu perfil na rede social X (antigo Twitter). Tradução do Sol da Pátria
O que está ocorrendo na Síria provavelmente é o acontecimento geopolítico mais incoerente que já vi: e quanto mais você analisa, mais confuso fica.
Quer dizer, considere o seguinte:
Primeiro de tudo, a velocidade do colapso de Assad ainda faz muito pouco sentido: depois de resistir com sucesso a vários inimigos por 13 anos ,com apoio russo e iraniano, em uma guerra civil brutal, seu regime de repente desmoronou em apenas 11 dias ,com quase nenhum derramamento de sangue.
Os rebeldes "libertadores" da Síria que estão sendo celebrados pelo Ocidente são grupos islâmicos que constam oficialmente como terroristas nas listas de grupos terroristas dos próprios países ocidentais. Em relação ao novo líder da Síria, o líder rebel Al-Julani, ainda existe uma recompensa no valor de US$ 10 milhões por sua cabeça - ele ainda é litado como um "Terrorista Global Especialmente Designado como tal" ("Specially Designated Global Terrorist") por ter fundado o braço sírio da rede terrorista Al Qaeda.
O Presidente em exercício dos EUA Joe Biden chamou a situação atual na Síria de "uma oportunidade histórica para o povo sofredor da Síria construir um futuro melhor" enquanto o próprio governo dela continua a ocupar um terço da Síria, a controlar seus campos de petróleo, manter sanções que paralisam a economia e a bombardear o território daquele país... obviamente comprometendo assim, e muito esse "futuro melhor".
O Primeiro-Ministro de Assad, Mohammad Ghazi al-Jalali, concordou imediatamente em trabalhar com os rebeldes (na transição) e eles o aceitaram - apesar deles serem inimigos mortais em uma guerra civil brutal de 13 anos.
Al-Julani, depois de anos orquestrando atentados suicidas e massacres sectários contra civis, agora está se posicionando de repente como um "amigo da diversidade".
A Rússia, apesar de ter uma aliança com a Síria que remonta à era soviética, de ter bilhões investidos na proteção de Assad e de possuir sua única base naval mediterrânea em Tartus (Síria), basicamente deu de ombros para tudo isso e deixou seu aliado cair.
Os novos líderes da Síria permanecem estranhamente silenciosos sobre Israel estar invadindo seu território e os EUA bombardeando e ocupando seu país. Eles não fizeram nenhuma declaração sobre seus ativos estratégicos - incluindo toda a Marinha e Força Aérea - estarem sendo destruídos em ataques aéreos dos EUA e de Israel.
Os EUA mantêm sua ocupação de um terço da Síria (incluindo a maioria dos campos de petróleo), alegando que é necessário "garantir a derrota duradoura do ISIS" - apesar de Trump ter declarado em 2019 (e os EUA repetidamente terem confirmado desde então) que "derrotamos o ISIS na Síria". A mídia ocidental ignora amplamente essa ocupação militar em andamento, enquanto celebra a "libertação" da Síria [agora controlada por terroristas fundamentalistas islâmicos].
O grupo palestino Hamas, enquanto está no meio de uma guerra [de vida ou morte] com Israel, reservou um tempo para parabenizar os rebeldes sírios - muito embora o Assad que esses mesmos rebeldes derrotarem fosse aliado de longa data do próprio Hamas (e do Irã) e muito embora a queda da Síria enfraqueça significativamente a posição estratégica do próprio Hamas.
Os EUA celebram a libertação de prisioneiros sírios enquanto, ao mesmo tempo, operam seus próprios campos de concentração no mesmo país, mantendo dezenas de milhares presos indefinidamente sem julgamento - metade deles sendo crianças - mas isso aparentemente não conta como opressão.
A Turquia está lutando contra as Forças Democráticas Sírias (SDF, em inglês) lideradas pelos curdos e faz isso com aparente aprovação dos EUA, enquanto as mesmas SDF lutaram contra Assad (que é o que os EUA queriam) - o que significa que forças apoiadas pelos EUA estão na prática lutando contra outras forças apoiadas pelos mesmos EUA.
O Irã, normalmente ansioso para defender seus interesses regionais, abandonou repentinamente bilhões em investimentos e abandono um aliado estratégico crucial em seu "Eixo de Resistência", evacuando todo seu pessoal e seus cidadãos em poucas horas.
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É realmente um dos capítulos mais estranhos da história geopolítica moderna. Toda explicação possível contém em si suas próprias contradições, e a maioria dos atores envolvidos está agindo contra seus próprios princípios e interesses declarados.
Nesta altura, parece que a explicação mais simples pode ser algo mais ou menos assim:
Os EUA vêem com bons olhos a queda de um inimigo de longa data (Assad);
já as potências vizinhas como Israel e Turquia veem uma oportunidade de ganho territorial;
líderes rebeldes, por sua vez, parecem dispostos a aceitar a perda de soberania e território em troca de controle doméstico sobre a Síria, mesmo que diminuída de tamanho territorial;
Rússia e Irã, enquanto isso, escolheram cortar sair de cena dadas outras prioridades regionais [como a Ucrânia e Israel];
já atores menores [no tabuleiro geopolítico] como o Hamas estão apenas se esforçando para se adaptar a uma situação nova.
Ainda assim, a velocidade com que tudo aconteceu de uma maneira coordenada, sem precedentes, dá a entender que ainda estão faltando algumas peças cruciais nesse quebra-cabeça realmente muito estranho.
Arnaud Bertrand é um empresário francês e comentarista de economia e geopolítica
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