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Victor Bruno

Os patriotas assassinam o Brasil

Artigo originalmente publicado em 25 de novembro de 2024. Permanece atual


Se a pessoa que disse «Mr. President, não deixe que os Estados Unidos virem o Brasil!» fosse americana, boa parte da população do nosso país estaria irada, protestando contra os ianques, enquanto a embaixada dos Estados Unidos teria de emitir uma nota dizendo que lamenta as declarações preconceituosas da cidadã e que reafirma os laços de amizade entre os dois países.


Mas Nayara Andrejczyk, a autora da frase, é brasileira.


Andrejczyk revelou depois que fora convidada pelo Partido Republicano para fazer parte da ação eleitoral de Trump no McDonald’s, no dia 20 de outubro. Andrejczyk se descreve como «brasileira de nascença e americana de lealdade», segundo a reportagem da CNN Brasil.


A lealdade brasileira à bandeira americana é um fenômeno relativamente comum. As celebrações calorosas à eleição de Trump, como vistas na última quarta, não deixam dúvidas disso.



É tão comum que, há não muito tempo, um ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, literalmente prestou continência à Stars and Stripes. E não uma, mas duas vezes. A última, em 2019, foi durante o recebimento duma comenda da Câmara de Comércio Brasil–Estados Unidos. Na ocasião, Bolsonaro até mudou temporariamente seu slogan de governo para «Brasil e Estados Unidos acima de tudo».


Bolsonaro
Jair Bolsonaro

A onda de «patriotas» que se levantaram na última década por causa do seu discurso «brasileirista» ficou calada. Críticas, mesmo, apenas da oposição. A parte intelectual da oposição logo chamou Bolsonaro de entreguista.


O que explica o silêncio?


É que, na direita brasileira, os Estados Unidos têm um papel salvífico.


A salvação americana


No evento de 2019, Bolsonaro disse que a política brasileira em relação aos Estados Unidos costumava ser de «antagonismo». Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, logo fez coro: «A esquerda tentou unificar a América Latina com ideias obsoletas»; mas Boslonaro iria «unificar a América Latina com uma economia de mercado». E isso, disse Bolsonaro, iria «trazer mais que a felicidade» para os dois países.


Não é preciso relembrar os eventos desastrosos para as direitas de Brasil e Estados Unidos desde 2019. Os republicanos saíram da Casa Branca no ano seguinte, enquanto Bolsonaro perdeu a presidência de forma vexaminosa dois anos depois, sendo ainda o xadrez para ele como uma espada de Dâmocles.


Ainda assim, mesmo com esses resultados fragorosos, a direita brasileira não reviu suas políticas, nem se movimentou nem um centímetro em quaisquer uma das suas posições. Está aferroada às ideias de economia de mercado —a «felicidade» de que falava Bolsonaro— e no ícone máximo da emergência direitista global dos anos 2010: Donald Trump.


Trump no McDonald's durante campanha
Trump no McDonald's durante campanha

Foi simbólico ver a brasileira Nayara no McDonald’s rogar para que os Estados Unidos não virem «o esgoto de corrupção que é o Brasil». Não há imagem que irradie de forma mais luminosa o símbolo da propaganda americana —dos poderes do livre mercado, da livre iniciativa, das vantagens do Estado mínimo e da potência ilimitada do empreendedorismo individual— do que o McDonald’s. Os arcos dourados da cadeia de fast food são como uma imagem sagrada desse ideal que, face à indiscutível (assim nos parece) prosperidade dos Estados Unidos e seus cidadãos, assume já os contornos duma religião.


Postagem de Bolsonaro
Postagem de Bolsonaro

O pior é que, dado que as críticas às atitudes de Nayara e Bolsonaro vêm da esquerda, cuja força retórica (os Estados Unidos apoiaram o golpe de 64; os Estados Unidos querem roubar nossas riquezas; somos vassalos dos interesses econômicos americanos, etc.) caminha a passos largos para o túmulo, o necessário questionamento sobre essas coisas passa batido.


Por que essa nova direita deifica os Estados Unidos de maneira tão assanhada?


Além do complexo de vira-lata


Na minha leitura, o projeto de renascimento da direita no Brasil se seguiu entre duas balizas:


  • De um lado, a ideia de que o Brasil é um projeto que tem potencial para atingir maturidade e prosperidade;

  • Do outro, a admissão de que esse projeto precisa de elementos externos, porque o Brasil é esvaziado por dentro.


As justificativas para esse balizamento são muitas: nossa relativa desimportância no cenário político, intelectual e econômico no mundo, assim como nosso atraso cultural. Porque, afinal, «o Brasil é uma terra de vigarista»,porque «não existe cultura universitária no Brasil» (para adquiri-la você tem que ler a série dos Great Books organizada pelo Mortimer J. Adler...), porque «a única nação do mundo que tem consciência moral são os Estados Unidos»; os americanos são também o único povo que têm coração, pois são o povo que mais doam dinheiro para a caridade em número per capita do mundo. Essas citações são todas do principal propagandista da religião americana no Brasil: Olavo de Carvalho. E ele fez o favor de resumir toda essa visão num único período:


[S]e o capitalismo obteve mais sucesso nos EUA do que em qualquer outro lugar foi apenas porque aí, desde o início, o esforço de produzir e lucrar veio associado à ética cristã da ajuda ao próximo e ao sonho heroico [sic] da conquista do território 

(Olavo de Carvalho, «Os desajustados», 24 mar. 2015)



Olavo de Carvalho na embaixada brasileira nos EUA
Olavo de Carvalho na embaixada brasileira nos EUA

Assim, está claro que tipo de associação pode criar um país funcional e próspero: a riqueza econômica nos moldes capitalistas desde que calibrados pela «ética cristã». Em resumo, o que Olavo de Carvalho defende é um país burguês, com o espectro do capitalismo sublimado pela ética protestante. É exatamente isso o que ele diz no artigo «O burguês segundo Marx» (12 set. 2011), em que fala que «o humanismo, a ética protestante, a democracia parlamentar, os direitos civis, a liberdade de imprensa, as eleições, o sistema judiciário independente, a previdência social, as leis de proteção às mulheres e crianças, a escolarização das camadas pobres, a aplicação universal da ciência e da técnica ao melhoramento da vida humana» são elementos constitutivos da sociedade burguesa —e ai de Marx por não considerá-los positivos!


Naturalmente, se dermos razão ao Olavo, boa parte desses elementos são alheios ao processo de formação histórica e de autocompreensão da sociedade brasileira, algo sugerido pelo próprio Olavo ao dizer «Sem o protestantismo e o humanismo [...], nada de sociedade burguesa». E sem protestantismo e humanismo, as bases da sociedade americana, nada de riqueza. Assim, a formulação americana da simbiose entre religião e economia é a única que verdadeiramente funciona, devendo ser imitada, mas desde que com a seguinte consideração: é preciso que se saiba que é o capitalismo aquilo que expande e fortifica as considerações econômicas da religião.


Num artigo clássico, e por algum motivo deletado das redes do Olavo, ele criticava a «contradição grosseira das doutrinas sociais da Igreja, que, celebrando da boca para fora a livre iniciativa em matéria econômica, continuam a condenar o capitalismo liberal como um regime baseado no individualismo egoísta», pois «no quadro do capitalismo em crescimento, a remuneração dos empréstimos não era apenas uma conveniência prática amoral, mas uma exigência moral legítima» (Olavo de Carvalho, «Capitalismo e cristianismo», República, dez. 1998). A demonstração do sucesso disso está nos Estados Unidos, «o país onde o capitalismo mais se expandiu foi aquele que permaneceu mais apegado às suas raízes comunitárias e religiosas» (Olavo de Carvalho, «Capitalismo e tradição», 10 jan. 2008).


Tendo a Igreja rejeitado o capitalismo —que é o verdadeiro resultado da leitura cristã da economia—, ela cortou fora seu braço econômico, condenando todos os crentes e todos os países que professam essa fé à miséria da falta de liberdade econômica. Coitados, pois «[a] relação direta entre liberdade econômica e prosperidade é a coisa mais evidente do mundo. (Olavo de Carvalho, «A fórmula da pobreza», 25 fev. 2008).


Para não dar na vista que o mundo deve sua melhor e mais funcional teoria econômica ao protestantismo, algo como uma nota errada na melodia dum autor católico como ele se dizia, Olavo passou a repetir um tópico de propaganda comum dos libertarians americanos: que as raízes do capitalismo e da liberdade econômica vêm dos escolásticos da Escola de Salamanca, com certos pressupostos vindos até mesmo de Sto. Tomás de Aquino[1]. Curiosamente, segundo Alejandro Chafuen, o desenvolvimento da economia cristã —i.e., o capitalismo— só pôde existir ao se abrir mão de Sto. Tomás e da economia laboral medieval[2].


  1. A principal obra sobre o assunto é Alejandro A. Chafuen, Faith & Liberty: The Economic Thought of the Late Scholastics, Lanham, Lexington Books, 2003.

  2. Não é preciso insistir que, desse ponto de vista, a Doutrina Social da Igreja é absolutamente anticristã.


Mas a lição maior é que a beatitude resultante duma boa vida é a prosperidade que apenas os americanos possuem, pois não são apenas capitalistas, mas também cristãos com uma economia cristã. E eis aí o aspecto religioso do americanismo.


A quarta grande religião ocidental


É claro que a sacralização dos ideais econômicos e religiosos não foi uma criação do Olavo. São parte intrínseca da própria identidade americana e a pregação do americanismo pelos quatro cantos do mundo são parte da atividade de todas as administrações americanas desde pelo menos o final da II Guerra Mundial. «Os povos livres do mundo se voltam para os Estados Unidos em busca de apoio para manterem-se em liberdade», disse Henry Truman.


Diante disso, Olavo e a nova direita fazem uma escolha: ante o discurso soberano de centro-esquerda filofrancês que emergiu nos anos 1970 e que de fato se provou insuficiente para o nosso país, optaram não por uma solução brasileira, que leve em consideração nossas realidades culturais, sociais e históricas. Pensaram em termos americanos.


Há diversas razões para isso. Em linhas gerais, parece ter havido certa antipatia para os elementos próprios —tradicionais, por que não dizer?— da realidade brasileira. É certo que muito do que é propriamente brasileiro, como certas manifestações culturais ou formas tradicionais de ser e comunidades, foram absorvidas pelo discurso de esquerda como elementos de oposição às forças reacionárias. Qualquer que seja a razão, o preconceito com as formas próprias de brasilidades e com, numa forma maior, com as nossas raízes ibéricas e mediterrâneas, se tornou uma marca do projeto neodireitista.


Logo, se de um lado (o esquerdo) há a perversão da brasilidade como instrumento revolucionário, do outro há o esvaziamento da brasilidade para fins americanistas. Isso resulta numa das marcas mais profundas do neodireitismo, em especial aquele de extração olávica: o desdém pela brasilidade. Porque além disso tudo que foi descrito, havia os próprios anúncios de Olavo de Carvalho sobre sua superioridade: «Eu sou o único brasileiro com educação universitária», «Meu nome significa “sobrevivente”; morreu todo mundo, só sobrou eu», «A classe universitária só tem charlatão: estude mais que seu professor e você vai levar dez até o fim do curso».


Patriotismo às avessas


A despeito disso, o projeto neodireitista é marcado pelo vocabulário patriótico. Há diversas razões para isso; uma delas, não sem importância, é a engenharia dum vocabulário ornado de saudade pelo Regime Militar. Porém, a verdadeira base intelectual desse patriotismo vem do tipo de literatura que a nova direita consumiu. Isto é, o tal mercado editorial que Olavo viabilizou aqui.


Esse é um mercado que raciocina em termos americanos, novamente. Por exemplo, quando se fala no colapso do Ensino Superior no Brasil, não se ataca o problema nem desde dentro e nem pela frente. Ataca-se tal como encarado nos Estados Unidos. E no século XIX, ainda por cima, já que o diagnóstico que a nova direita faz da nossa situação universitária é interpretada pelo livro A Educação Superior e o Resgate Intelectual (2016), um relatório do Yale College publicado em 1828 que chegava à conclusão de que a instituição deveria enfatizar o ensino clássico.


É claro que o problema não pára por aí. A própria cantilena do «comunismo», em que qualquer pessoa que sugira limites à propriedade privada é provavelmente um bolchevique, é uma abordagem tipicamente americana que a nova direita assimilou. No caso dos Estados Unidos, as duas grandes caça-às-bruxas anticomunistas (a de 1919 e a de Joseph McCarthy) começaram inspiradas no mesmo tipo de discurso que vemos hoje na nova direita: os comunistas, que são contra a propriedade privada e a religião, vão dinamitar os nossos valores. Só que, nesse paradigma, a defesa contra o comunismo é ipso facto patriotismo porque na narrativa da formação do Estado americano os valores do capitalismo são em si mesmos os valores americanos; estes, por sua vez, são valores sagrados e divinos[3].


  1. Veja-se Eugene McCarraher, The Enchantments of Mammon, Cambridge, Mass., Bellknap, 2019.


Como no Brasil a leitura anticomunista neodirieitista é enquadrada nos termos da leitura americana, o nosso patriotismo não é, paradoxalmente, a defesa da pátria em termos brasileiros, já que os nossos termos não servem. Ela é feita em termos americanos, pois no modo de ver da direita a melhor coisa que um país pode ser é almejar ser os Estados Unidos, apesar de que esse país, historicamente, nunca foi governado e tampouco foi formado pelos ideais que buscam à custa de muita bomba e black ops da CIA espalhar pelo mundo. Basta ver como funcionava a férrea teocracia puritana das colônias do norte, lar dos congregacionalistas que criaram o Yale College. Liberdade individual e livre iniciativa econômica eram as últimas coisas que os perpetradores dos Processos de Blair desejavam. E em todo o século XX, e ainda mais agora com a guerra econômica contra a China, livre mercado sem regulação é a última coisa que a administração americana deseja. Talvez por isso, a fim de desviar a atenção de que o «patriotismo» em questão é a defesa do ideal do país dos outros, encaixa-se o Brasil e a defesa dessa brasilidade fajuta na noção mais geral e inofensiva (mas mentirosa e insignificante) de «Ocidente», a despeito do projeto nefasto que trouxe essa ideia à luz.


Do ponto de vista da política externa americana, tudo isso é muito bom, porque no esquema da ordem liberal, de fato os Estados Unidos são o centro e o topo do mundo. É de se pensar até que ponto os propagandistas do neodireitismo não espalham as obras dos intérpretes da direita americana (aqueles que eram de «circulação proibida no meio editorial brasileiro» por causa do bloqueio «comunista» nas editoras) não foram persuadidos com incentivos espúrios para fazer isso. O problema não é apenas a propaganda americana em si —o que já é em si mesmo muito mal—, mas o fato de que a popularização da interpretação patriótica americanizada nos afasta muitos quilômetros dos termos em que a crítica dos problemas do país realmente precisa ser enquadrada.


Aqui é tentador pensar em que termos essa discussão deve ser feita, mas esse é um debate que nos afastaria muito deste já longo arrazoado. Mais breve me parece dizer em que termos a discussão não deve ser feita: nos termos da religião americanista e da sua principal virtude, o materialismo consumista e comodista. É preciso nos forçarmos a conhecer o Brasil em toda a amplitude das suas possibilidades e em toda a profundidade da sua história, algo que pode começar pela rejeição do projeto americano e ocidental, duas coisas que, como ensinaram Rafael Gambra e Francisco Elías de Tejada (dois teóricos cujas ideias, elas sim, constelam com as necessidades e com as configurações históricas do nosso país), nasciam enquanto o mundo que permitiu o Brasil existir era assassinado.


Este mundo era a Cristandade, mas isso é tema para outro artigo. Em todo caso, enquanto a «direita» não aprende isso, ela segue a matar o Brasil.

1 comentário

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Iago Aparecido
Iago Aparecido
20 déc. 2024

Excelente artigo !


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