"O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir Rei, da cabeça aos pés.
[...] Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau."
Da primeira crônica de Nelson Rodrigues sobre Pelé, ainda em março de 1958, após o ponta de lança do Santos, de apenas 17 anos de idade, destruir o América no Maracanã. Rodrigues começava a defender a convocação do jovem para a Copa, vendo nele um país altivo, talentoso, confiante, singular e popular, que sacudiria seu "complexo de vira-lata" pra longe.
Houve um tempo, e parece até hoje, em que as classes médias e boa parte dos intelectuais pátrios consideravam o Brasil um país fracassado. Uma sociedade tão repleta de defeitos e problemas que jamais poderia figurar entre aquilo que chamavam de ''civilização''.
Um povo mestiço, que começou com casamentos entre portugueses, considerados por essas elites como a escória da Europa, e indígenas que viviam numa tal ''idade da pedra''. E depois ''maculado'' pela importação de milhões de almas de uma raça supostamente inferior e que deveria carregar para sempre o estigma da escravidão.
Bandos de ''escravos naturais'', assim essas elites nos viam. Nada de bom poderia sair dessa terra. Se Deus havia presenteado o Brasil com miríades de belezas e recursos naturais, capazes de invejar todos os continentes, também nos tinha dado um povinho mequetrefe que mal prestava como mão de obra barata. O lance era vender os recursos pros gringos e manter os bárbaros nas senzalas e serviços domésticos.
Mesmo após a revolução getulista e o Estado Novo, esse discurso ainda norteava boa parte da cúpula dirigente da Pátria. E o futebol era usado como exemplo. Principal expressão esportiva mundial, o ''esporte dos bretões'', como nos ensinaram a chamar a arte antiquíssima de correr atrás de uma bola, demonstraria a inferioridade física e emocional da sub-raça forjada em nossos sertões -- e que agora migrava para as cidades do litoral.
Diziam que éramos um fracasso no subcontinente sul-americano, em que ficávamos atrás dos vizinhos do Prata, mas também diante da superioridade tática dos europeus. Diziam que o time brasileiro amarelava na hora 'h'. Na hora da onça beber água, tremíamos na base e entregávamos a paçoca.
Tinha sido assim na final de 1950, em pleno Maracanã. A civilização e indústria brasileira teriam feito o seu papel, erguendo o maior estádio do mundo e organizando a competição. A mídia fez seu papel ao louvar os jogos e vitórias do escrete. Mas pau que nasce torto, morre torto. E a derrota na final seria a prova da impotência da má formação de toda uma nação.
Para compensar uma suposta falta de virilidade, colocaram na cabeça dos jogadores brasileiros que eles deveriam cair na pancadaria caso perdessem uma partida. Assim nos respeitariam, veríamos que somos homens. Foi o que fizemos na Copa de 1954: eliminados para uma das equipes mais fantásticas da história, a Hungria de Puskas e Hideguthi, até jornalistas partiram pra porrada, chamada de "A Batalha de Berna''.
No fim das contas, perdemos mais uma.
Era uma época em que os maldosos queriam mandar para o estrangeiro uma seleção mais branca possível. Porque pensavam que só um escrete assim poderia fazer frente aos europeus, tanto física quanto emocionalmente. Quando a Copa de 1958 se aproximou, muitos queriam deixar o caboclo Garrincha, descendente de índios Fulniôs, fora do escrete. Ele era o melhor, diziam, mas também muito ''irresponsável''. Davam o exemplo de um golaço do ponta direita do Botafogo, que não contente em driblar a defesa inteira do adversário, esperou o goleiro ficar de pé e tentar mais uma vez pegar a pelota, só pra driblá-lo de novo antes de fazer o gol. Absurdo! Quanta imaturidade! Que meninice! Onde está a seriedade desse povo de malandros?
Logo, logo Garrincha humilharia não só os zagueiros e laterais gringos que ele chamava sarcasticamente de ''João'' mas também esses críticos. Mas o discurso vira-lata e anti-patriótico que se apoiava no esporte só foi confinado de vez nos porões e grotões pela ascensão de um moleque mineiro, torcedor do Vasco mas que explodiu num pequeno time de fora da capital paulista, o Santos.
Aquele pretinho sapateou em cima de qualquer baixa auto-estima das classes médias do país. Toda a quinta-coluna que odiava a Pátria teve de chorar e ranger dentes quase que em segredo, modulando o discurso, escondendo o que verdadeiramente sentia. Porque esse menino de Três Corações se enxergava como o melhor. E provava que era melhor em campo, contra qualquer equipe que lhe aparecesse pela frente. Quando as dificuldades se apresentavam, em vez de se retrair, Pelé se agigantava, era invadido por uma santa fúria. Não se intimidava com cara feia, bordoada, camisas grandiosas, multidões rivais, rótulos de ''primeiro mundo''.
Edson ganhou sua camisa quase que por acaso. E a tornou o emblema global do craque. A camisa 10 se tornou importante porque vestia o furacão que impulsionava a seleção de uniforme azul e amarelo. Ele era imparável, sinônimo de gol, de vitória, de título.
Ainda mais impressionante, era sinônimo de completude técnica. Talvez alguém lançasse a bola melhor -- talvez!; talvez alguém finalizasse melhor na área -- talvez!; talvez alguém driblasse mais -- talvez!; talvez existisse em algum lugar alguém ainda mais habilidoso -- talvez!; talvez alguma alma pudesse se movimentar ou se colocar melhor no campo, ou ter mais visão de jogo -- talvez!
Mas o pacote completo e potencializado até o mais alto nível, só um possuía. E por isso passou a ser chamado de Rei. Não Rei do Brasil, ou da América do Sul, ou de sua Era. Não. Pelé foi reconhecido pela imprensa mundial como REI DO FUTEBOL.
Os europeus se rendiam. O futebol brasileiro tinha um quê a mais em relação à própria singularidade do futebol sul-americano. Não era só a técnica do toque de bola pelo chão, mas também o drible e brilho individual, e o jogo ofensivo e objetivo voltado para o gol. Era ''a poesia em movimento''. Era uma equipe que se tornou tão admirável que a Copa do Mundo se tornou, até certo ponto, inimaginável sem sua presença. O futebol e a seleção canarinho, que todos amavam. Mas não só amavam por ser simpática. Também temiam. Também respeitavam. Era a Pátria de chuteiras! O Jogo Bonito!
A seleção brasileira se tornou símbolo de um país que sonhávamos. Grandioso e vitorioso. Singular e popular. Organizada pelo que de melhor existia na tecnologia e ciência, na preparação física e medicina esportiva, no estudo e na criação tática, mas também capaz de expressar no cenário internacional as particularidades culturais únicas geradas pelo nosso povo, e inspirar assombro por isso mesmo. Era de fato o nosso orgulho.
E tudo isso está simbolizado na figura do Rei Pelé.
Os vira-latas e quinta-colunas nunca se conformaram. Sempre esperaram o momento em que poderiam dizer que o futebol não representava nada. Que Pelé na verdade era só mais um mortal filho-da-puta, como qualquer outro, cheio de defeitos morais, de pequenas alienações, de erros em sua biografia. Que brasileiro não sabe jogar bola, não entende de tática, não tem técnica, e que precisa aprender com os europeus. Nossas conquistas não teriam grande importância, eram ''fáceis'', insignificantes. Nossos heróis não eram monstros sagrados, mas só uns pilantras que vendiam ilusões em um tempo em que se ''amarrava cachorro com linguiça''.
Os vira-latas saíam dos bueiros em que haviam se escondido durante aqueles tempos de confiança, dos quais o futebol era um símbolo, e vociferavam nas ruas, nas universidades, nas escolas, nos palanques eleitorais, do alto das instituições.
E construíram o Brasil da Nova República, da teoria da dependência, do neoliberalismo, da americanofilia, da cópia dos movimentos sociais ianques, da imitação de Miami. Um país oficial mesquinho que não pode fazer mais nada senão odiar o Rei Pelé porque odeia qualquer possibilidade própria de grandeza e superioridade.
Mas não é assim entre nós, patriotas que conhecemos a verdade. O futebol brasileiro, ainda que adormecido, é o MELHOR DO MUNDO. Em geral, gringo é cintura dura, que que vive de importar crianças do Sul Global, sob pretexto do livre-mercado, para enfraquecer nossos clubes e seleções.
Pelé é REI. Nunca ninguém chegou nem perto de sua perfeição técnica. Nem mesmo os geniais argentinos geraram algo parecido, deixando aqui minha homenagem a deidades como Maradona, Messi e Di Stefano.
Mesmo quando Pelé retornar ao Olimpo, que fica nos céus do Brasil, continuará vivo no topo da montanha de feitos que construiu para si mesmo. Ele “mostrou o futebol como é que é”.
E não é o esporte dos bretões. O Brasil é o país do futebol. E quem o governa é o Rei-Menino, que veio para esfregar na cara dos céticos e dos cínicos toda a potência do nosso povo novo.
Parabéns, Pelé!
PÃO, TERRA E TRADIÇÃO!
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