Originalmente escrito e publicado em inglês como "Erdogan Persuaded the Pope to Condemn the Olympics Opening Ceremony" - traduzido e adaptado pelo próprio autor
Muito coisa já se escreveu sobre o quanto que o espetáculo "woke"1 da cerimônia de abertura das Olimpíadas em Paris (de 26 de julho de 2024) trouxe discórdia. O espetáculo controverso ensejou a condenação de líderes religiosos muçulmanos e cristãos em todo o mundo. O Papa Francisco, por sua vez, finalmente quebrou seu silêncio e se juntou a essas vozes em 3 de agosto, oito dias após o episódio. Parece que, para isso ocorrer, foi necessário um esforço de convencimento, com relatos de que o bispo de Roma só tomou essa decisão após conversar com... ninguém menos que o presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Isso é impressionante por si só e merece alguma análise.
A abertura das Olimpíadas, vale recapitular, foi tão ofensiva que, com a reação global, os vídeos do evento foram apagados dos sites oficiais (e isso foi pouco noticiado) - eles não podem mais ser encontrados no canal do YouTube do Comitê Olímpico. O mesmo se deu com o canal do YouTube da NBC Sports, a emissora oficial dos Jogos nos EUA. Nenhuma explicação oficial foi fornecida ainda, mas o motivo é evidente, tendo em vista o grande número de condenações de políticos e líderes religiosos - e com a empresa americana C Spire retirando sua publicidade das Olimpíadas. Até Jean-Luc Melenchon, o líder do partido de esquerda La France Insoumise (LFI), condenou o espetáculo. Os organizadores das Olimpíadas de Paris pediram desculpas, ainda que alegando que não tinham a intenção de ofender ninguém.
A cerimônia de abertura, transmitida para o mundo todo, de fato não foi um programa próprio "para toda a família": incluiu, entre outras coisas, uma ménage à trois ("casal" de três pessoas em situação erótica), uma apresentação da Lady Gaga, exposição de genitália masculina e o tableau vivant mais famoso (e infame) chamado "La Cène Sur Un Scène Sur La Seine", um jogo de palavras em francês que significa "A Última Ceia no palco do [Rio] Sena". Foi basicamente uma paródia da Última Ceia de Jesus Cristo, envolvendo artistas travestidos (em drag) e deuses gregos. Tudo isso se encaixaria bem em um show da Madonna ou do Marilyn Manson em qualquer capital ocidental, mas, em se tratando de abertura de Olímpiadas, esse tipo de provocação é inédita.
Tradicionalmente, as cerimônias de abertura dos jogos olímpicos, que têm sua própria "diplomacia" e etiqueta, enfatizam a cultura e a história do país anfitrião de uma maneira que seja inclusiva para o público em todo o mundo. Jesus Cristo é, claro, respeitado e venerado pelos muçulmanos também, que acreditam que Ele é um Profeta e mensageiro de Deus. Acontece que o suposto desfile de “diversidade” (como frequentemente ocorre com a ideologia “woke” ocidental), na verdade não foi inclusivo para crianças, famílias, pessoas religiosas, o Sul Global e para a maior parte do mundo. Não é de se admirar, então, que uma reação tão intensa tenha ocorrido.
Em uma breve declaração (de 90 palavras apenas), o Vaticano disse que “a Santa Sé ficou entristecida com certas cenas durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris” e, portanto, “não pode deixar de unir sua voz às outras que se levantaram nesses últimos dias para deplorar a ofensa feita a vários cristãos e crentes de outras religiões”. O pronunciamento afirmou ainda que tais eventos devem celebrar valores comuns internacionais ao invés de “ridicularizar as crenças religiosas de inúmeras pessoas”, e acrescentou que a liberdade de expressão deve ser “limitada pelo respeito aos outros” - algo com que os próprios ideólogos “woke” concordariam, embora eles discordem sobre quem também deve ser respeitado (o respeito, para eles, não inclui pessoas religiosas, ao que parece).
Até aí, nada demais. A questão é que, de acordo com a America Magazine e diversas outras fontes, o Vaticano havia decidido não emitir nenhuma declaração condenando o evento porque os bispos franceses já tinham se pronunciado nesse sentido. O raciocínio por trás disso não está claro: pode ser que seja parte da abordagem geralmente conciliatória do Papa Francisco e seus esforços para enfatizar a tolerância. De qualquer forma, foi noticiado que, no dia 1º de agosto, o presidente Erdogan, da Turquia, telefonou para o Papa após o assassinato do líder do Hamas Ismail Haniyeh, em Teerã (Irã), e também aproveitou a oportunidade para pedir ao pontífice que "levantasse sua voz junto e assumisse uma posição comum sobre essa questão" (o episódio das Olimpíadas), que "ofendeu os muçulmanos tanto quanto o mundo cristão". Erdogan havia dito anteriormente ao seu Partido AK que tentaria persuadir o pontífice romano - e persuadiu-o, ao que parece.
Isso levou John L. Allen Jr. a se perguntar, em seu artigo para o Catholic Herald, por que foi preciso "um muçulmano" para convencer o líder católico a se juntar ao coro de vozes (como está no próprio título de seu artigo). Afinal, por uma semana inteira, vários players católicos importantes (incluindo alguns bispos) tentaram persuadir o Papa a comentar sobre o assunto - sem sucesso. Erdogan o conseguiu. Parte da explicação pode ser encontrada no fato de que o Papa também é um Chefe de Estado. O raciocínio de Allen Jr. é de que o bispo de Roma poderia estar "desmotivado a começar uma briga diplomática com a França" à luz de uma situação já tensa lá, envolvendo um debate sobre o aborto. John L. Allen Jr. é considerado o escritor anglófono mais respeitado em se tratando de assuntos relacionados ao Vaticano.
O mesmo especialista também observa que Erdogan foi inteligente em "embutir" seu apelo (sobre a questão olímpica) dentro de uma discussão sobre a campanha militar israelense em Gaza. Durante a ligação telefônica, o presidente turco sugeriu que o Papa se engajasse em conversas com países que apoiam Israel como parte de uma ofensiva de esforços diplomáticos para evitar uma escalada do conflito. Desempenhar precisamente esse papel é do interesse da Santa Sé e é por isso que o Papa resolveu, argumenta Allen Jr., "conceder" isso para Erdogan e, assim, garantir ainda mais o apoio do líder turco. Tal seria parte de uma reorientação do Vaticano “em uma direção que se distancia de seu perfil histórico de instituição ocidental rumo a um papel mais verdadeiramente global e não-alinhado, e parte fundamental dessa agenda tem sido o diálogo com o mundo islâmico”.
Em suma, o episódio recente envolvendo o Papa e Erdogan demonstra o declínio da autoridade moral do Ocidente (liderado pelos EUA), especialmente do ponto de vista do Sul Global, do mundo islâmico e dos cristãos em geral. Ele mostra como a ideologia "woke", frequentemente descrita como uma ferramenta para o soft power de Washington (alguns preferem falar sobre "imperialismo woke"), está saindo pela culatra. Alguns analistas chegam a sugerir que ela se tornou um risco para a própria segurança nacional dos EUA. O episódio também demonstra como Erdogan, apesar de suas declarações recentes mais incendiárias (sobre uma possível intervenção militar turca no conflito israelense-palestino), ainda deseja que a Turquia atue como uma mediadora da paz na Terra Santa, enquanto projeta seu país e a si mesmo como uma espécie de líder do mundo islâmico - ou mesmo do próprio Sul Global. São metas ambiciosas e desafiadoras: por um lado, desempenhar o papel de mediador na causa da Palestina exigiria uma certa neutralidade que a Turquia claramente não possui. Em todo caso, tais objetivos também são parte de uma agenda neo-otomanista2 turca, que, como já escrevi alhures, enfrenta muita oposição de muitos atores políticos diferentes no Oriente Médio, na Ásia Central e alhures. Nessa articulação específica envolvendo Papa, contudo, Erdogan certamente pode se gabar de um sucesso.
Notas
"Woke" (pronuncia-se "uôuk"), "desperto" em inglês, refere-se à ideologia identitária de origem americana dos EUA que enfatiza a política de minorias, ações afirmativas, políticas agressivas de inclusão, diversidade etc.
A agenda "neo-otomana" refere-se a ambições expansionistas e irredentistas do nacionalismo turco, no sentido de "recuperar" territórios do tempo do império turco-otomano.
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