Por Sâa Farafín Sandouno – 26/11/2022
Tradução de João Silverio
https://www.nofi.media/2022/11/pour-un-retour-a-la-tradition-primordiale/81830
O processo de luta pela libertação da África implica o dever de confrontar os males que atingem o continente africano sob todos os aspectos: econômicos, políticos, militares, culturais e, até mesmo, espirituais/religiosos. A parte espiritual é um aspecto delicado, pois ela é essencialmente individual -- quando a tratamos, é preciso ser prudente, sem criar divergências.
Tradição Primordial: da necessidade de um afrocentrismo tolerante
O afrocentrismo é uma corrente filosófico-político-identitária que visa a provocar uma mudança positiva na mentalidade do africano (após séculos de alienação e de enfraquecimento de sua identidade), a fim de assegurar que este último coloque a África como paradigma central sem, todavia, isolar-se do resto do mundo. O afrocentrismo, que é um corolário de trabalhos e pesquisas do Dr Cheikh Anta Diop, Théophile Obega, Molefi Kente Asante ou Nioussure Kalala Omotunde, visa a construir um modelo paradigmático no qual a África poderá focalizar em sua ontologia endógena, sua percepção de coisas, seu cogito, sua filosofia, seu saber, estando consciente do gigantesco passado histórico de seu povo e de sua contribuição à humanidade. O afrocentrismo visa a um novo tipo de Homem Africano.
“O Africano que nos compreendeu é aquele que, após lidas nossas obras, sentirá ele mesmo renascido como um outro homem, animado de uma consciência histórica, um verdadeiro criador, um Prometheus portador de uma nova civilização e perfeitamente consciente de que a terra deve, ao seu gênio ancestral, todos os domínios da ciência, da cultura e da religião.” - Cheikh Anta Diop
Se a afrocentricidade pode ser saudável numa África completamente contaminada de um modelo eurocentrista que se impôs com o colonialismo, é necessário estar atento aos extremos. Qualquer teoria neste mundo, se atingiu excessos, pode ser nociva. Ao que fazemos alusão? Ao extremismo num certo sentido de afrocentricidade, uma reconstrução do prisma africano dentro de certos movimentos. Devemos ser prudentes para não cair num reconstrucionismo moderno e artificial, um neopaganismo idólatra tão longe da Tradição da cultura ancestral africana ou em uma intolerância àqueles que praticam as ditas religiões reveladas (Cristianismo, Islã, etc.). Se um retorno ao nosso pensamento paradigmático afrocentrista é vital para uma transição para a Era de Ouro na África (como outrora), ela deverá se enraizar na Tradição Primordial ainda presente nas nossas aldeias sagradas (muralhas da resistência antiglobalista), em vez de folclorizar um apego ao passado sem iniciação com uma reconstrução através de um olhar moderno de hoje. Historicamente, Kemet (verdadeiro nome do Egito Antigo) deve servir de base à África para a compreender, como são a Grécia Antiga e a Roma Antiga para a Europa, mas será necessário enraizar-se profundamente numa Tradição dos nossos países e conduzir uma ação direta de iniciação. Nós poderemos definir este processo com o neologismo “tradicracia”[1] (o poder da Tradição), pois na realidade esotérica-tradicional (isto é, oculta e acessível a alguns) na África, encontra-se nossa verdadeira salvação dos produtos new age de outras forças obscuras.
O que é a Tradição Primordial?
A Tradição primordial é um princípio universal que liga as diferentes emanações religiosas e espirituais, é um conceito divino, essencialmente imaterial, que foi usada por homens dotados de qualidades particulares e místicas nos tempos antigos. Esta Tradição (diferente do costume, que é um produto do homem moderno) seria universalizada ao longo do tempo, como explicaram o metafísico franco egípcio René Guénon ou o intelectual suíço Frithjof Schuon, e teria deixado seus resíduos não só nos quatro cantos do mundo, mas também em todas as religiões. Isso significa que você pode ser cristão, muçulmano, praticante de vodu, etc, mas, no fim, todos os ramos religiosos têm uma fonte comum, que é o saber multimilenar não humano nascido na África, cujos ancestrais dos negros foram os guardiões. Com o passar do tempo, os homens foram se distanciando dessa Tradição Primordial, distorcendo ou desviando essa sabedoria, através de sistemas tais como o politeísmo, a idolatria, o ateísmo. Como consequência, nenhuma salvação pode ser encontrada sem um retorno aos resíduos dessa sophia perennis (saber primordial). Um conhecimento primordial que poderá ser a ponte entre as ditas religiões reveladas e os tradicionalistas africanos, unidos pelo Bem comum.
Na África, nós tivemos grandes nomes, tais quais Cheikh Amadou Bamba, de crença muçulmana, Simon Kimbangu, de crença cristã, Ogotemméli, ligado à espiritualidade Dogon. Mesmo que os três fossem bem diferentes no plano religioso, estavam sobre o mesmo caminho de retidão e amor à África que transcendia as crenças religiosas.
A defesa de um costume em nome da Tradição, todavia estigmatizado por aqueles que estão nos espaços religiosos revelados, não é, na realidade, o reflexo do que se pode chamar de “negritude”, conceito defendido por Kemi Seba em seu segundo livro, Black Nihilism. A negritude (não confundir com a nobre corrente filosófica que é a Negritude) seria a contração entre dois termos: “negri” vem de necros (que significa “morte” em grego), enquanto o sufixo restante, “itude”, nos remete ao conceito de orgulho. A negritude seria, portanto, um reconstrucionismo moderno e um orgulho artificial, apoiando-se sobre o paganismo e outros produtos da modernidade.
Quanto ao conceito vital de Tradição, René Guénon, em seu livro Iniciação & Realização Espiritual, no quinto capítulo escreveu: “(…) O que deve-se compreender, antes de tudo, é isto: tudo o que é de ordem tradicional implica, essencialmente, um elemento supra-humano (…)” e, portanto, acrescentamos um elemento divino que não é reconstrucionista, um elemento que está ligado à tradicracia. Um elemento que pode ser alcançado por iniciação direta, como já afirmado.
Tradição Primordial: por um Panafricanismo Perenialista
Os estudos demonstraram que a África é o berço da humanidade e da civilização humana. Por consequência, esta tradição primordial de que falamos surgiu na África. René Guénon e muitos dos seus discípulos popularizaram a questão do tradicionalismo sobre o plano teórico no Ocidente, sob o conceito de perenialismo (outro nome da Tradição). No entanto, seus estudos estiveram limitados porque eles se concentraram na dicotomia Ocidente e Oriente, assim ignorando o berço negro-africano. Quando se imerge na cultura africana, percebe-se que a África representa e é o melhor exemplo de bloqueio de civilização em matéria e conhecimento primordial. Aquilo que não foi feito pelos guenonianos deverá ser feito pelo panafricanismo do século XXI, juntamente à via perenialista. A África não renascerá a não ser que se redescubra, mas somente com a criação de pontes no seu interior (para o panafricanismo), ao invés da criação de muros (oposições de religiões) que beneficiam as forças predatórias exógenas. A nova geração africana deve conhecer e estudar o perenialismo, o único meio de harmonizar a via da coexistência religiosa e cultural.
Índice de imagens:
I – Ritual do culto de Vodun.
II - Molefi Kete Asante. III - Cheikh Anta Diop.
IV – Kemi Seba.
V – René Guénon.
VI – Bandeira do Panafricanismo.
[1] Para manter o neologismo optamos por traduzir como “tradicratie” por “tradicracia”, unindo as palavras “tradição” + “aristocracia”. Aristocracia no sentido guenoniano, de uma Elite Espiritual que nada relaciona-se com questões econômicas, mas sim metafísicas.
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