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Foto do escritorUriel Araujo

Putinismo e duginismo: doença infantil da dissidência tradicionalista brasileira

Em live há alguns meses, o geopolítico e intelectual Alexandr Dugin afirma que o presidente russo Vladimir Putin está combatendo a 1ª teoria política, a 2ª e a 3ª, logo, ele (Putin) já se insere necessariamente, afirma Dugin, em um horizonte da "Quarta Teoria Política". A afirmação é retórica: concretamente, é falsa. Putin não está combatendo nem a 1ª nem a 2ª nem a 3ª teoria política.


“Sobre a 4ª teoria política, Putin está travando uma guerra contra o nazismo na Ucrânia, ou seja, está lutando contra representantes da 3ª teoria política, embora caricaturais. E admite que o Ocidente está por trás do nazismo ucraniano, então a guerra principal é contra a 1ª teoria política. O encontro entre Bernard Levy e o líder abertamente nazista do batalhão em Odessa é muito simbólico. Putin também claramente não aceita o comunismo (2TP), então, objetivamente, Putin está de pé naturalmente na 4TP" (Dugin, 2022, em live).

Para comentar isso, é preciso explicar brevemente o que seriam essas “teorias” e quem é Dugin - se você já sabe do que se trata, pode pular o parágrafo seguinte abaixo.


O geopolítico russo Alexandr Dugin tem sido citado por vários jornais brasileiros e estrangeiros como o suposto "guru" do presidente russo Vladimir Putin, o que, claramente, é um exagero. Seja como for, é inegável que Dugin exerce um importante papel na diplomacia informal russa e que é um homem bem-conectado, exercendo alguma influência, direta ou indireta, como intelectual, nos "policy-makers" russos. O pensador russo é um filósofo, cuja ideia de uma “Quarta Teoria Política” precisa ser estudada a sério.


Levando a sério as críticas à modernidade ocidental levadas a cabo por pensadores da antropologia, como Marcel Mauss, Louis Dumont, Gregory Bateson e outros, Dugin critica o “mito do progresso” presente em todo pensamento moderno e seu racismo implícito. Ele identifica o liberalismo, que vê no Indivíduo o sujeito político, como sendo o primeiro grande paradigma político moderno (que ele chama de “teoria” – logo, a 1ª teoria política). As ideias socialistas comporiam a 2ª teoria política da modernidade (2TP), colocando a classe como o sujeito histórico. Já os fascismos/nacionalismos seriam a 3TP, que vêem na nação o grande motor da História. Todas essas “Teorias” estariam contidas no grande paradigma moderno (de progresso, evolucionismo social etc), que precisaria ser superado por algo novo, por uma 4a via (nem liberalismo nem comunismo nem fascismo). Resumindo, é esta a proposta de Dugin. No que pesem suas limitações e erros, trata-se de uma importante e necessária crítica às limitações epistemológicas do pensamento político ocidental que se pretende universal, mas que, por razões de espaço, não iremos comentar mais sobre essa proposta aqui. É aqui que entra a afirmação que nos interessa: de que Putin estaria em luta contra a 1ª, a 2ª e a 3ª teorias políticas.


Ora, em sua política interna, Putin está longe de romper com o paradigma liberal (1TP), por mais que defenda valores comunitários e familiares (os conservadores americanos também fazem isso, mas, sem romper com as estruturas econômicas perversas, é impossível “preservar a família”). Por exemplo, em 2018, Putin sancionou uma proposta de reforma da previdência, que, na prática, dificulta a aposentadoria (um claro ataque à família e aos idosos), o que levou a protestos e uma queda de sua popularidade - típica medida de austeridade do ideário econômico liberal. O historiador Angelo Segrillo, especialista em assuntos russos da USP, chega a dizer, em sua tese de livre-docência, que Putin não pode ser considerado nem eurasianista nem eslavófilo - ele seria um tipo de ocidentalista moderado, portanto mais próximo do liberalismo. A Rússia é uma economia de mercado nos moldes do paradigma liberal em sentido amplo, com forte presença e influência dos oligarcas (que, no Ocidente, também existem e são chamados apenas de “bilionários”).


Portanto, Putin não combate a 1TP (o paradigma do liberalismo). Ele combate o Ocidente (que Dugin relaciona ao liberalismo), mas por razões geopolíticas pragmáticas e de segurança! Não o faz porque esteja combatendo o "liberalismo", assim como a disputa geopolítica entre EUA e Rússia não se resume a uma disputa ideológica - em palestra em Brasília, no CEUB, o embaixador russo disse, em meados de 2015 (aqui, estamos parafraseando-o): “não importa a cor da bandeira que esteja hasteada sobre o Kremlin em Moscou [seja vermelha do comunismo ou outra], a Rússia sempre será uma ameaça para os EUA porque eles se pretendem a única superpotência do planeta)”. Ora, é verdade que o Ocidente é o principal baluarte do liberalismo, mas países liberais também guerreiam entre si. É claro que combater a OTAN é necessário e é um passo importante para sepultar a hegemonia mundial do paradigma liberal - mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.


Os duginistas no Brasil costumam afirmar que tanto os fascismos (3TP) quanto comunismo (2TP) estariam “mortos” - afirmações problemáticas. Ao mesmo tempo, afirmam que a Rússia hoje luta contra o neonazismo (3TP) na Ucrânia (luta, então, contra um cadáver político?). Na verdade, embora haja uma hegemonia mundial do pensamento liberal, é falso dizer que o comunismo e o fascismos estejam mortos. A China, uma superpotência, se pauta, em larga medida, pelo paradigma marxista. Mais ainda: a China apoia a Rússia, assim como o fazem a Coreia do Norte e vários atores políticos e organizações comunistas no mundo, inclusive dentro da Rússia. Portanto, é no mínimo desproporcional dizer que Putin esteja combatendo o comunismo ou que este não tenha mais relevância alguma. Logo, Putin não combate a 2TP.


Sim, existem organizações neonazistas na Ucrânia e o Batalhão Azov, abertamente neonazi, é oficialmente parte da Guarda Nacional ucraniana - e tem cometido atrocidades contra a população de Donbass desde 2014 (o fato do atual presidente ucraniano ser judeu não muda isso). Sim, a Rússia literalmente luta também contra nazistas armados na Ucrânia e temos visto todos os dias as fotos de soldados ucranianos do Azov e outros batalhões com suásticas etc. Porém, embora seja um erro negar o poder da extrama-direita (inclusive neonazi) no atual regime ucraniano pós-Maidan, também seria um erro descrever o regime nacionalista ucraniano atual como um regime neo-nazi, sendo ele antes uma composição de forças heterogênea. Mais ainda, mesmo se fosse o caso, o neonazismo é apenas um exemplo ou manifestação do horizonte dos fascismos (que Dugin chama de “terceira teoria política”). Existem vários tipos de ultranacionalismo, e a Rússia, de acordo com seu interesse nacional pragmático, tem inclusive apoiado, direta ou indiretamente, aberta ou veladamente, vários partidos políticos e grupos populistas, ultranacionalistas e mesmo neofascistas na Europa inteira, como é amplamente sabido. A 3TP, no entender do próprio Dugin, não se resume ao nazismo nem a ideologias fascistas. Combater especificamente o neonazismo ucraniano antirrusso não equivale necessariamente a estar em luta contra um paradigma político inteiro (3tp) ou contra a própria 3tp hipostasiada. Trata-se de uma operação militar específica contra alvos específicos que ameaçam a segurança russa e que parece, cada vez mais, estar evoluindo para uma política de expansão territorial grão-russa. Logo, Putin não combate a 3tp.


Finalmente, aquilo que Dugin chama de uma “4TP” (um paradigma a ser construído) não necessariamente precisa combater a 2TP nem a 3TP. Segundo o próprio Dugin (no livro Quarta Teoria Política), rompendo-se com o “círculo hermenêutico” desses paradigmas e com os elementos indesejáveis (por exemplo, o racismo da 3TP e o materialismo antirreligião da 2TP), determinados elementos tanto do socialismo quanto dos nacionalismos corporativistas antiliberais poderiam ser aproveitados, numa espécie de síntese para construção da quarta via. O principal “inimigo” e alvo da 4TP seria a primeira teoria (o liberalismo) e até mesmo elementos deste (a ideia de liberdade etc.) poderiam ser aproveitados e ressignificados, segundo o próprio Dugin, como se pode ler na obra “A Quarta Teoria Política”, recentemente reeditada em tradução brasileira pela Editora Ars Regia. Assim, o fato de Putin supostamente estar “combatendo” as 3 teorias políticas não é nem necessário nem suficiente para caracterizar a empreitada político-militar dele como quarto-teórica.


Mais ainda: o fato da Rússia supostamente estar defendendo uma lógica “imperial” (no sentido de Grande Espaço ou Großraum (nos termos de Carl Schmitt, usados por Dugin) não necessariamente insere a Rússia de Putin numa lógica nova ou fora dos paradigmas políticos vigentes. A Rússia capitalista é uma Federação multinacional e multiétnica desde os anos 1990, assim como a União Soviética socialista já o era. A Suíça e a Bélgica também são Estados multinacionais. Pior ainda: em textos recentes (vide o lamentável artigo chamado “A Etnossociologia da Ucrânia no Contexto da Operação Militar”), Dugin tem aparentemente defendido um tipo de chauvinismo grão-russo que nega a existência de qualquer identidade ucraniana, inclusive afirmando que a língua ucraniana, repleta de “polaquismos”, seria “artificial” e “ridícula” – isso, em sua lógica, é análogo ao trabalho de homogenização cultural que o Estado-Nação burguês historicamente tem realizado (combatendo dialetos, culturas regionais etc. em prol da padronização de uma variante linguística eleita como a norma culta e a língua nacional padrão).


Portanto, Putin não é uma expressão da “4TP” ou de um paradigma político revolucionário que supere os principais paradigmas modernos (nem mesmo nos termos do próprio Dugin).


Isso tudo dito, é importante enfatizar que está bastante claro que os EUA, na gênese, são os grandes culpados da crise entre Rússia e Ucrânia e que a expansão militar da OTAN (a Organização do Tratado do Atlântico Norte) é injustificável e uma ameaça à paz mundial - vide o excelente artigo do renomado diplomata e cientista político John Mearsheimer, publicado em março de 2022 na Economist, bem como seu artigo de 2014.


Daí não se segue, contudo, que o Brasil ou qualquer pessoa ou grupo anti-imperialista ou mesmo “quarto-teórico” tenha nenhum tipo de obrigação moral de dar “carta branca” ou apoio incondicional a todo e qualquer ato do governo russo - muito menos grupos nacionalistas.


Ora, é preciso separar o Alexandr Dugin, filósofo e geopolítico que, gostando-se ou não, precisa ser estudado seriamente, do Alexandr Dugin patriota russo, falando duma perspectiva russa e engajado na atual guerra "´proxy" de propaganda e contrapropaganda que está sendo travado entre EUA e Rússia. Quando Dugin diz que Putin representa a “Quarta Teoria Política” (uma suposta nova via que supera o paradigma da modernidade ocidental) ou ainda quando diz que a Rússia está em luta contra todos os principais paradigmas políticos da modernidade, ele fala isso de forma retórica, para dizer que há uma "crise das ideologias" e para dar a entender que o Kremlin em Moscou precisará de uma ideologia nova para legitimar seu projeto de nação - e aí tenta vender o peixe dele, como pensador dessa quarta via, o que é natural. Porém, raciocinar ao pé da letra, tomando uma metonímia como algo concreto é um erro.


O putinismo e o duginismo hoje são a doença infantil da chamada dissidência política tradicionalista.

Que as principais ideologias políticas da modernidade ocidental não possuem aplicação universal já está bastante claro e não negamos. No Brasil, também precisamos desenvolver um pensamento nacional fiel às nossas raízes e à nossa civilização brasileira e latino-americana, quer classifiquemos isso como uma "terceira via" ou uma “quarta teoria política” (ou quinta ou sexta...) ou como qualquer outra coisa ou nome que valha. Precisamos, em todo caso, fazê-lo a partir de nosso pensamento e nossa tradição nacional! Se Dugin ou qualquer outra pensador de qualquer outro país, faz críticas ao liberalismo, comunismo e fascismo, essas críticas são bem vindas e convém estudá-las e aproveitar delas o que for de nosso interesse. O mundo dá sinais de que o atual sistema internacional está entrando em colapso, na transição para um mundo multipolar, e é preciso que surjam no horizonte novas alternativas, novos modelos, novos sistemas.


Porém, não está claro que o presidente Putin represente ou personifique ele próprio essa nova via. E mais ainda: a eventual anexação de grande parte da Ucrânia ou, pior ainda, do território ucraniano inteiro não é algo a ser aplaudido jamais. O Brasil deve aproveitar a transição para o mundo multipolar como uma janela de oportunidade para que a nossa civilização possa cumprir seu ideal, fazendo raiar no céu o Sol da justiça e liberdade para nosso povo - sem apoiar incondicionalmente e sem estar a reboque nem dos EUA nem da Rússia nem da China nem de ninguém.


NEM WASHINGTON NEM PEQUIM NEM MOSCOU!


PÃO, TERRA E TRADIÇÃO!

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