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Foto do escritorLeandro Altheman Lopes

Racialização e dessacralização hoje são as novas ameaças aos usos tradicionais da ayahuasca

O Dia da Cultura Ayahuasqueira é comemorado no dia 24 de novembro, numa alusão ao dia em que foi estabelecida a Carta de Princípios das Entidades Religiosas Usuárias da ayahuasca, firmada no ano de 1991. Esse documento é um importante marco na história da institucionalização do uso da ayahuasca no Brasil. Há pouco mais de 20 anos atrás, este que vos fala era chamado de "jornalista ayahuasqueiro" – título involuntariamente empregado de forma pejorativa – na tentativa de desqualificar as minha reportagens, talvez em uma tentativa de colocá-las no campo da "alucinação".



Aliás, "substância alucinógena" era o título da própria bebida na imprensa nacional. A progressista Folha de S. Paulo publicava uma matéria do próprio dono do jornal, Otávio Frias Filho, que comparava a comunidade daimista do Céu do Mapiá com o clássico "Coração das Trevas" de Joseh Conrad, livro que inspirou o filme também clássico "Apocalipse Now". Nesse caso, Padrinho Alfredo seria uma espécie de Coronel Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando (um militar suspeito de ter enloquecido, que comandava, nas florestas da fronteira do Vietnã com o Camboja, seu próprio esquadrão, que o cultuava como se fosse ele um deus).


Coronel Kurtz, o militar enloquecido, em cena famosa de Apocalypse Now, filme de 1978, dirigido por Francis Ford Coppola


Esse pequeno exemplo nos mostra como era o tratamento dado pela imprensa nacional ao fenômeno social e religioso do uso da ayahuasca. Muita coisa mudou e mudou graças ao trabalho de muita gente, mas nesta semana, em que se comemorou o Dia da Cultura Ayahuasqueira, destaco a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras. Sediada em Rio Branco (Acre), a Câmara congrega as três principais religiões ayahuasqueiras: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) e ajudou a construir um espaço de respeito na imprensa para os usos da ayahuasca. O equívoco da não inclusão dos usos indígenas vem sendo remediado a partir do trabalho de patrimonialização que ampliou enormemente esses estudos, incluindo desde os kenês (grafismo tradicional) às incontáveis formas musicais indígenas - modernas e tradicionais - que a acompanham o uso da ayahuasca.


Por outro lado, os avanços da chamada ciência psicodélica – neurociência avançada que estuda a utilização de psicotrópicos para saúde mental – querendo ou não, acabou conquistando também um espaço de maior respeito para a ayahuasca.


Tudo isso nos mostra que a ayahuasca - que, nos anos 2000, era retratada de maneira negativa, ou jocosa, nos meios de imprensa - conquistou um melhor espaço de representação na mídia. No entanto, hoje, se analisarmos algumas matérias da imprensa e as reações a ela, bem como os debates que dominam o meio ayahuasqueiro, podemos ver que as "ameaças" hoje vem de outros lugares.


Racialização e dessacralização hoje são as novas ameaças aos usos tradicionais da ayahuasca

Um dos pontos tem relação com a "racialização" dessa religiosidade, fenômeno já percebido em religiões de matriz africana, em que se passa a discutir a presença da "branquitude" nesses espaços. No caso das religiões ayahuasqueiras é ainda mais complicado. O Santo Daime foi fundado pelo negro retinto Mestre Irineu Serra, mas sua origem é inequivocamente indígena. Recentemente, uma publicação do campo progressista apostou pesado na racialização negro x indígena x branco. Nos grupos e publicações destinados ao público ayahuasqueiro, surgem novas polarizações e debates, embaladas ao som do bolero identitário. A mais óbvia delas é a racialização - fenômeno que atinge em cheio nossa sociedade com os paradigmas birraciais dos EUA.

No Acre, o que existe é uma via de mão dupla estabelecida de longa data entre indígenas e não-indígenas no uso da ayahuasca. Conceitos religiosos não-indígenas também penetram nas aldeias e são assimilados por estes

A ideia de que "o homem branco roubou a ayahuasca" é tão superficial quanto estúpida, mas é repetida como sabedoria universal. Ora, primeiro que os seringueiros não seriam exatamente "brancos", mesmo se aplicados os critérios da birracialidade, já que, segundo a falácia defendida pelo Estatuto da Igualdade Racial, "pardos são negros". Nordestinos diversos e caboclos foram, de modo geral, quem fez a transposição do uso da ayahuasca para o contexto não-indígena.


Segundo que no Acre, o que existe é uma via de mão dupla estabelecida de longa data entre indígenas e não-indígenas no uso da ayahuasca. Conceitos religiosos não-indígenas também penetram nas aldeias e são assimilados por estes. Por exemplo, nos últimos dez anos, ritmos e instrumentos brasileiros e afro-brasileiros passaram a fazer parte dos rituais indígenas.

Há, assim, um intenso e frutífero diálogo entre indígenas e as religiões ayahuasqueiras. Cada vez mais, indígenas são convidados a participar de cerimônias em igrejas. Há um intenso aprendizado e troca que forma uma rede de alianças e de saberes, como aliás, sempre existiu no universo da ayahuasca, mesmo antes da chegada dos brancos ou do chamado "homem branco’, na língua dos identiitários (mesmo que os pioneiros tenham sido, na verdade, mestiços).


Estudos apontam que a ayahuasca serviu como ponte e instrumento de ligação entre diferentes povos desde tempos imemoriais. É algo que sabemos por exemplo, através do compartilhamento de músicas. Povos do Acre cantam canções de povos indígenas localizados a centenas de quilômetros no Peru, Bolívia e Colômbia. Ou seja, a ayahuasca foi e ainda é um elemento de encontros e trocas culturais.

Outra dessas "ameaças" vem da dessacralização do uso da ayahuasca: O que é percebido como uma bebida sagrada para povos e religiões passa a ser somente mais uma porção de substâncias com composição química a ser decifrada. Não que os estudos não devam acontecer, mas há um enorme risco de banalização de seu uso, inclusive, como defendem alguns, não apenas para terapias, mas para "uso recreativo".

Ou seja, se num passado recente, as ameaças vinham do campo mais conservador da sociedade, fruto de desconhecimento e desrespeito, hoje, parecem principalmente vir do campo progressista as maiores ameaças ao usos tradicionais da ayahuasca.

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