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Recordando Cascatinha & Inhana

Os apreciadores da música, em 20 de abril passado, certamente renderam tributos ao saudoso Francisco dos Santos, da dupla Cascatinha & Inhana, 'Os Sabiás do Sertão' -, donos de uma das combinações de vozes mais inconfundíveis do panteão artístico nacional, destacada pela força dos sentimentos impressos no cantar, expressividade tão própria da arte brasileira.



Francisco dos Santos, nascido em Araraquara no ano de 1919, filho de um humilde casal de lavradores, perdeu o pai à altura de seus cinco anos. As parcas condições financeiras da família, composta ora por sua mãe, seu padrasto e os onze irmãos, levaram-no à labuta desde a tenra idade; tais adversidades não impediram que, demonstrando algum dom para música desde o princípio, ingressasse na banda de Marília como percussionista; aos dezoito anos, passou a integrar o corpo musical do Circo Nova Iorque, como baterista. Ali foi apurando seu talento, revelando-se intérprete de modinhas e serenatas e, ocasionalmente, aprendendo a tocar o violão.


Ana Eufrosina dos Santos, nascida em 1923 na cidade de Araras, interior de São Paulo, ali vivia quando, aos dezoito anos de idade, conheceu Francisco, que passava pela cidade para se apresentar com o Circo; já agora fazia apresentações musicais com o outrora trapezista Natalício Fermino dos Santos, com quem então compunha a dupla 'Cascatinha e Chopp'. A jovem, também cantora, que se apresentava em um conjunto musical com alguns de seus irmãos, destacou-se à vista do rapaz, em quem também pôs os olhos. Encontro arrebatador: o noivado, a contragosto de seus pais, não tardaria, culminando em casamento no prazo de cinco meses.


Abandonando seu lar para seguir viagem com o amado, compuseram, num primeiro momento, o Trio Esmeralda, junto a Natalício. Chopp, como era chamado, dentro em pouco abandonaria o grupo por alguns desentendimentos e, daí em diante, o casal - o primeiro da história da música sertaneja, diga-se de passagem - adotaria o nome artístico de Cascatinha & Inhana - Cascatinha seria, para alguns, referência à rebeldia da juventude de Francisco, que fugia das aulas para tomar banho de cascata e, para outros, homenagem à Cerveja Cascatinha, amplamente conhecida à época, enquanto 'Inhana' seria uma corruptela de 'Sinhá Ana', forma de tratamento usual naqueles sertões. Viveram anos a fio se apresentando em circos, onde conheceram, entre outros artistas, o eterno Rei do Baião, Luiz Gonzaga, e o genial Raul Torres, da dupla Raul Torres e Florêncio, o inesquecível compositor de 'Cabocla Tereza' e tantas outras canções célebres, que tomou o casal por seus 'afilhados musicais' e abriu-lhes as portas no mundo artístico, dando espaço à dupla em suas apresentações, convidando-os para algumas de suas gravações e, logo, recorrendo ao grande prestígio de que gozava junto à gravadora Todamérica, dando-lhes a oportunidade de gravar ali seu primeiro disco, em que figuravam canções como 'La Paloma' - uma das muitas guarânias que a dupla gravaria ao longo da carreira, dado seu imenso apreço pela música paraguaia, que tão bem se imiscuiu ao cancioneiro sertanejo por cá - e 'Fronteiriça', esta última de José Fortuna, cujo concurso à carreira artística da dupla seria inestimável no porvir.


Desfrutando a simpatia do grande poeta sertanejo, receberam, como presente de valor insondável, as canções 'Índia' e 'Meu Primeiro Amor', duas versões de lejânias, conhecidíssimas, para as quais, todavia, já havia adaptações em português, motivo pelo qual somente no quinto disco da dupla é que receberam do diretor o aval para gravá-las. Nada mais precisaria ser dito; sucesso avassalador. Milhões de cópias vendidas - um marco para a música sertaneja, naqueles idos da década de 1950, que jamais havia testemunhado tamanho sucesso comercial. Ali se sagraram Ana e Francisco para a eternidade, emprestando às belas letras a interpretação pungente e tão harmônica que lhes era característica.


O casal se manteve benquisto pelo público e pela imprensa em razão da rica combinação da singeleza irretocável de Inhana, muito apropriadamente considerada uma das mais sublimes vozes femininas do Brasil, e da constância de Cascatinha; para além da virtude no canto, Cascatinha era destacado e experimentado violonista, e Inhana ainda dominava uma técnica, denominada 'pistom', ou 'trompete nasal', que se pode verificar em gravação, disponível no YouTube, da canção 'Meu Primeiro Amor'. Consagraram canções como 'Jamais Terei Ilusão', 'Flor do Cafezal, 'Colcha de Retalhos' - mais tarde regravada por Chitãozinho & Xororó -, e precederam, na música sertaneja, duplas indissociáveis da rica expressão musical dos vizinhos hispano-americanos, como Pedro Bento & Zé da Estrada - que regravaria 'A Lua É Testemunha', clássica adaptação de Goiá e Inhana - e Belmonte & Amaraí.





A parceria, fundada sobretudo no imenso amor que transparecia nos olhos dos amantes, se estenderia até o ano de 1981, quando, às portas da comemoração dos quarenta anos de casamento, Inhana sucumbiu a um infarto, aos 58 anos de idade. Cascatinha continuaria a cantar em carreira solo pelo interior de São Paulo até o ano de 1996, em que veio a deixar-nos por força de uma cirrose hepática.


Esses caboclos paulistas, a um só passo distintos pela elegância e afeitos às raízes camponesas, a que sempre tornavam nas letras em que envidavam a força arrebatadora de uma união de almas, enriqueceram a já abastada tradição musical sertaneja, tão condescendente ao diálogo com o que lhe dissesse algo em essência, e se tornaram um marco, inaugurando a ideia dos duetos compostos por casais, como viriam mais tarde os Duos Glacial, Ciriema e Beija-Flor. Francisco dos Santos, que completaria 105 anos por agora, é um patrimônio da arte brasileira e símbolo da brasilidade, excelso produto da confluência de raças e culturas que fundou-nos enquanto gente, e como tal, cabe-nos preservar a sua memória e exaltar a sua grandeza face à ameaça do esquecimento, com que têm sido ameaçados os mais brilhantes intérpretes do espírito pátrio. Que as gerações vindouras, com o amparo das redes, tenham acesso à riqueza do seu legado e façam-no viver para além dos séculos na consciência nacional.

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