A polêmica em torno da vinda de Roger Waters ao Brasil revela uma rede ideológica que conecta a esquerda e a direita brasileiras. Ary Bergher, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil [CONIB], entrou com ação para barrar a entrada de Roger Waters no país ou então prendê-lo por "apologia ao nazismo". O contexto é o clima criado pela militância identitária, que a partir de alguns jargões de fácil assimilação, e instrumentalizando problemas históricos das sociedades ocidentais, pretende criminalizar todos os que discordem de sua agenda política, propostas e interpretação da vida social.
O autoritarismo doentio de grupos de esquerda que se escondem por trás das bandeiras da "diversidade", "igualitarismo", "minorias" e da luta contra o preconceito e a discriminação, se tornou uma cruzada contra as identidades e culturas mais importantes das classes populares e dos nacionalismos. Há um tentativa deliberada não só de propagar determinadas ideologias por meio das instituições de ensino e da hegemonia na mídia corporativa, mas também de modelar afetos e comportamentos, domesticar hábitos e festividades, em um projeto amplo de engenharia social e de violência simbólica contra as populações mais afastadas do centro do poder.
Desse modo, questões complexas e reais como o racismo, a homofobia, o machismo etc. são sequestradas em prol da imposição de um discurso político-ideológico e de modelos institucionais derivados da experiência de outros países, e que são usados como meio de legitimar certa estrutura de dominação tanto nas relações internacionais quanto na estrutura social interna ao país. Parte considerável da classe média pode exercer seu sadismo contra as classes populares, encaradas como selvagens que devem ser colonizados pela luz do "progresso", enquanto servem de cadeia de transmissão de comandos e ideias que vêm de movimentos políticos dinamizados a partir das metrópoles centrais do capitalismo, tudo com amplo apoio de multinacionais.
Mas não termina aí. Ainda que o episódio expresse o totalitarismo do identitarismo de esquerda, que rotula de racistas e nazistas todos os seus inimigos para poder vetar sua presença no debate público, não podemos deixar de olhar para aspectos mais específicos deste caso. A CONIB tem um histórico tão intolerante quanto os "esquerdeiros", usando a causa justa do combate ao antissemitismo para obstaculizar qualquer crítica à política do Estado de Israel no Oriente Médio. Desse modo, o antissionismo, postura legítima contra um etno-nacionalismo particular que se associa ao Imperialismo e ao roubo de territórios palestinos, é sinonimizado ao racismo de uma maneira canhestra e desonesta.
Não precisamos revisitar a polêmica por trás da construção do Memorial do Holocausto no Morro do Pasmado, no Rio de Janeiro, em um acordo entre Marcelo Crivella, então Prefeito da Cidade, e o premier de Israel, Benjamin Netanyahu. As obras foram realizadas, ainda que pairassem dúvidas sobre sua licitação, e com oposição da Associação de Moradores de Botafogo, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomus, ONG associada à Unesco), e de grupo de empresários liderado por Carlinhos de Jesus e pelo Samba Social Clube Bruno de Paula, que venceram uma licitação em 2015 para uso de parte do local e cujo resultado aparentemente não foi respeitado pelo poder público. Não custa recordar que Crivella é 'Bispo' da Igreja Universal do Reino de Deus, cujos líderes construíram uma igreja em São Paulo chamada de "Templo de Salomão", em que se vestem como rabinos durante os cultos.
São sinais de um radicalismo que acomete não só a CONIB, mas pode ser flagrado em algumas figuras da militância política na comunidade judaica. Basta citar os esforços do empresário Meyer Nigri, fundador da Tecnisa, para divulgar Bolsonaro na comunidade judaica de São Paulo. Argumentava que o candidato, se eleito, mudaria a política externa brasileira, e reconheceria Jerusalém como capital de Israel, tal como fez Donald Trump em medida condenada por 14 dos 15 membros do Conselho de Segurança da ONU [o veto veio dos EUA], pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pela União Europeia, pela China, pelo Reino Unido etc. Até hoje, só a Guatemala seguiu o entendimento de Trump sobre a questão. Os grupos ligados e seduzidos por Meyer Nigri estão também por trás do desastre representado por Bolsonaro nas Relações Internacionais.
Assim, não causa surpresa que o Vice-Presidente da CONIB, o advogado Ary Bergher responsável pela ação contra Roger Waters, seja conhecido como um bolsonarista fanático que chegou a desejar a morte para uma senhora judia que protestava contra a palestra de Bolsonaro no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, em início de 2021. O episódio gerou um Boletim de Ocorrência e a expulsão de Ary Bergher da Presidência da Federação Israelita do Rio de Janeiro.
É fácil concluir que Bergher se aproveita da visita de Roger Waters, que em seu último show no Brasil fez manifestações contrárias a Bolsonaro, para defender uma mescla de sionismo radical a um bolsonarismo fanático. Tudo em nome da luta, esta sim justa, contra o antissemitismo. Resta entender agora o quão fundo o bolsonarismo radical deitou raízes na CONIB.
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