Na ânsia de mostrar sua oposição à russofilia política (que precisa ser criticada), Felipe Quintas parece querer provar que seu oposto, a russofobia (igualmente equivocada), é mesmo um fenômeno existente em círculos de brasileiros.
Nos últimos dias, ele vem associando a Rússia a "hostes bárbaras", país "anticivilizador" e de cultura "desindividualizante". Ou seja, vem realizando uma série de ataques à Rússia, sua população e sua cultura.
Deve ser alguma reação à demonização que alguns russófilos fazem ao próprio Ocidente. É lamentável ainda assim. Pior ainda, ele decidiu atacar a própria Igreja Ortodoxa, como se vê nos prints acima.
Esclareço que a Igreja Ortodoxa não pertence à Rússia nem nasceu lá. O Patriarcado Russo é moderno, gerado a partir de missões do Patriarcado de Constantinopla. A conversão russa à Ortodoxia se deu no século X. A Igreja Ortodoxa, ademais, se considera universal. Assim como há uma jurisdição russa, há também uma grega, outra romena, e árabe [Antioquia], e norte-africana [Alexandria], sérvia, e, vejam só, até norte-americana [OCA -- Orthodox Church of America]. Minha paróquia, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, e que está ligada à Jurisdição Polonesa, está cheia de jovens convertidos de famílias católicas e evangélicas que não tem qualquer interesse por pendengas geopolíticas ou interesse na cultura russa. E não há qualquer problema nisso. A Igreja Ortodoxa chegou no Brasil com as comunidades sírias e libanesas. E também com imigrantes russos, ucranianos, poloneses. E também pela conversão de brasileiros na Igreja em Portugal. E hoje se dá em território brasileiro mesmo (são mais de 130 mil cristãos ortodoxos no Brasil hoje - um número, para título de comparação, um pouco maior do que o número de judeus no Brasil). Minha discordância com a russofilia não se confunde com a demonização da Rússia, pelo qual tenho simpatia. Mas, mesmo que eu não tivesse, a Igreja Ortodoxa não se confunde tampouco com a Rússia. É uma tradição religiosa milenar, presente em dezenas de países, e que é minoritária neste país como tantas outras que existem no Brasil (Obs: as pessoas recebem um novo nome no Batismo desde sempre. É um costume cristão séculos anterior à existência da Rússia).
Mais ainda: Quintas confunde religião ortodoxa com russofilia; política externa russa com duginismo (não, Dugin não é o "cérebro de Putin"; e confunde duginismo com o Tradicionalismo de René Guénon etc.
A esse respeito, as teses de Alexandr Dugin têm por objetivo proporcionar uma ideologia que sustente a liderança estratégica e militar da Rússia em uma aliança do Norte da Eurásia contra os EUA. Para Dugin, não há multipolaridade possível sem essa liderança. Todos que lutam pela multipolaridade tradicional teriam de aceitar, ainda que tacitamente, o papel central da Rússia. Nesse sentido, ele é também um saudosista do movimento comunista internacional que foi instrumentalizado pela União Soviética. Dugin prevê, em suas obras, a criação de uma rede de militantes no mundo todo pra difundir e defender sua teoria multipolar. Esta rede se assumiu recentemente como "movimento russófilo". Esse tipo de "russocentrismo" não faz parte da obra de nenhum autor Tradicionalista. Vem, isso sim, de outros círculos esotéricos, como o de Hermann von Keyserling, nobre estoniano com vínculos com aristocracias em todo o continente - incluindo a avó do Rei Charles III, a Princesa Alice, cuja sepultura teve importância na Coroação do atual Monarca inglês. Keyserling, fundador do conceito de Fuhrerprinzip, era casado com a neta de Otto von Bismarck, e considerava Moscou a capital que expressava o espírito do Oriente, e que acabaria por revolucionar o mundo. As teses da Eurásia, dos poderes telurocráticos etc. também estão presentes em suas obras e conferências, algumas delas dadas em Lisboa no início dos anos 1930. A história não é exatamente como alguns imaginam
O "Tradicionalismo" de Alexandr Dugin não é o do perenialista suíço Frithjof Schuon (1907-1998) tampouco. Diferentemente de Schuon, o russo não acredita que o esoterismo ou o "núcleo" das diferentes formas religiosas tradicionais ("unidade transcendente das religiões") seja compatível ou que exista uma única Tradição no núcleo de todas as religiões. Para ele, algumas tradições seriam necessariamente ''inimigas'' de outras. O mundo tradicional de Dugin, portanto, não é o estabelecimento de uma paz mundial que seria tutelada por uma elite gnóstica reunida de modo conciliar. É, ao invés disso um mundo em guerra permanente -- mas, nesse cenário, por meio de critérios tradicionais, e não mais modernos. A aliança entre as diferentes formas tradicionais assim, para Dugin, é circunstancial. Trata-se de um acordo contra o inimigo comum: o poder global norte-americano. Porém, se esse poder for destruído, não existirá mais uma razão última para que os vitoriosos permaneçam aliados.
Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
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