O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro no Brasil, é uma data de profunda importância para refletirmos sobre o papel histórico do elemento afrodescendente (negro, mulato e cafuzo) na formação da identidade nacional e para reafirmar o compromisso civilizacional de combate ao racismo. A influência africana está presente em todos os aspectos da cultura brasileira, desde a música, a religiosidade, o linguajar cotidiano, até as formas de sociabilidade que caracterizam o povo brasileiro.
A Contribuição Afro na Cultura Brasileira
Na música brasileira, a influência africana é inegável. Ritmos como o samba, o maracatu, o afoxé e mesmo o funk têm suas raízes nos batuques trazidos pelos escravizados. Esses ritmos, reinventados no Brasil, se tornaram símbolos da cultura nacional, influenciando artistas de todos os gêneros.
No campo da religiosidade, manifestações como o candomblé e a umbanda trouxeram uma riqueza espiritual que transcendeu os terreiros, influenciando a religiosidade popular. O culto a Iemanjá, por exemplo, ultrapassa barreiras religiosas, sendo celebrado tanto por praticantes das religiões de matriz africana quanto por católicos e outros brasileiros.
Já a devoção à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é um exemplo da presença africana no catolicismo praticado no Brasil, ao passo que a centralidade da devoção popular à Nossa Senhora Aparecida, uma representação negra da Virgem Mãe que é a Padroeira do Brasil, também tem uma conotação racial.
As festas populares, como as congadas e reisadas são marcadas por essa mesma herança. Elas expressam a alegria e a espiritualidade afro-brasileira, reafirmando os laços de identidade e resistência cultural em meio às adversidades históricas.
No cotidiano, a linguagem brasileira está permeada por palavras e expressões de origem africana, que dão ao português falado no Brasil uma riqueza única. Termos como "dengo", "moleque" e "axé" são apenas alguns exemplos do quanto a matriz africana está entranhada na fala nacional e de como a expressão de afetos tipicamente brasileiro são profundamente influenciados pelas línguas afro, como os idiomas Banto.
Personagens Históricos e suas Lutas
Zumbi dos Palmares é um dos grandes símbolos da resistência negra no Brasil. Como líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi encarnou a luta por liberdade e dignidade em uma sociedade escravocrata. É verdade que não há razão para que neste reconhecimento a Zumbi (ou o que ele representa) e à luta dos escravizados, a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel em 13 de maio, seja olvidado. Seu papel fundamental na abolição, bem como de importantes segmentos da sociedade brasileira, entre negros, brancos e mulatos deve ser igualmente lembrado.
Mas a história da luta contra a escravidão não se limita a Zumbi ou à Princesa Isabel. Nomes como Luiz Gama, advogado e abolicionista autodidata, José do Patrocínio e André Rebouças, engenheiro e defensor da emancipação, são todos dignos de reconhecimento. Eles usaram seus conhecimentos e influência para combater a opressão.
O movimento abolicionista foi amplo e envolveu diversos setores da sociedade, incluindo intelectuais como Castro Alves, o “poeta dos escravos”, cuja obra denunciou os horrores da escravidão e clamou pela liberdade.
André Rebouças, engenheiro, escritor e abolicionista brasileiro, desempenhou um papel crucial na luta pela abolição da escravidão no século XIX. Filho de uma família afrodescendente com forte tradição intelectual, Rebouças foi um dos primeiros engenheiros formados no Brasil e utilizou seu prestígio para advogar pela liberdade e igualdade. Como membro ativo do movimento abolicionista, ele não apenas defendia o fim da escravidão, mas também propunha medidas para a integração social e econômica dos ex-escravizados, como a reforma agrária e a criação de colônias agrícolas. Rebouças acreditava que a liberdade só seria plena com a garantia de dignidade e oportunidades para os libertos, e suas ideias influenciaram debates sobre cidadania e justiça social no Brasil pós-abolição. Além disso, sua atuação próxima à monarquia e sua colaboração com a Princesa Isabel evidenciam seu papel estratégico na articulação política que culminou com a Lei Áurea. Rebouças deixou um legado como defensor incansável da dignidade humana em uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade.
Luiz Gama foi um dos maiores expoentes da luta abolicionista no Brasil e um símbolo de resistência e superação. Nascido livre, mas vendido como escravo pelo próprio pai, Gama recuperou sua liberdade aos 17 anos e dedicou sua vida à causa da emancipação e à defesa dos direitos dos negros e escravizados. Autodidata, tornou-se advogado e, sem possuir diploma formal, usou seus vastos conhecimentos jurídicos para libertar mais de 500 pessoas mantidas em escravidão, defendendo-as gratuitamente nos tribunais. Além de advogado, foi poeta, jornalista e orador, utilizando seus textos e discursos para denunciar os horrores da escravidão e o racismo estrutural da sociedade brasileira. Militante radical, Luiz Gama criticava a elite escravocrata e exigia mudanças profundas, sendo uma voz fundamental para a abolição. Seu legado transcende sua época, representando uma luta contínua por justiça e dignidade para todos os brasileiros.
Relembrando a contribuição de Gilberto Freyre
Cumpre lembrar que o antrópologo e escritor Gilberto Freyre foi um dos primeiros a abordar a contribuição afro-brasileira de maneira positiva e integradora em sua obra clássica "Casa-Grande & Senzala" e outros trabalhos. Ele destacou como as culturas indígena, africana e europeia se entrelaçaram para formar a sociedade brasileira, embora sem deixar de reconhecer as tensões e desigualdades desse processo. Outro nome fundamental é Jorge Amado, cuja literatura exaltou as tradições afro-brasileiras e deu voz a personagens negros e mulatos em cenários como a Bahia, berço de uma rica herança cultural. Suas obras, muitas adaptadas para a teledramaturgia, popularizaram o tema e ajudaram a inserir as tradições afro-brasileiras no imaginário nacional de forma positiva.
A Luta Anti-Racista: um dever civilizatório de todos os brasileiros
Mesmo com tantos exemplos de integração e riqueza cultural, o racismo ainda persiste como uma chaga na sociedade brasileira. O legado da escravidão deixou marcas profundas que precisam ser combatidas e superadas. Como apontou o antropólogo Antonio Risério, a sociedade brasileira, apesar do racismo e da escravidão, criou espaços generosos de convivência que ajudaram a definir a alma do brasileiro. Esses espaços são preciosos e devem ser protegidos e ampliados.
O Dia da Consciência Negra não é apenas uma celebração, mas um chamado à ação. É dever de cada brasileiro reconhecer o valor inestimável da herança afrodescendente e combater todas as formas de racismo, não apenas por justiça histórica, mas porque essa herança é parte inseparável de quem somos como nação.
A luta pela igualdade racial é essencial para que o Brasil realize plenamente seu potencial como uma civilização verdadeiramente justa.
Que a memória de Zumbi dos Palmares, João Cândido e de tantos outros inspire gerações a construir um país onde o racismo seja finalmente erradicado e onde nossa riqueza étnico-racial seja celebrada como a maior força construtora de nossa identidade nacional.
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