A consciência negra não pode se separar da formação de uma consciência nacional.
O Prof. Silvio Almeida, ex-Ministro do Governo Lula, após um período sem se pronunciar publicamente, voltou à ativa nas redes socias nesta semana da Consciência Negra. Almeida publicou um texto no Instagram sobre o tema, que chama a atenção.
O contrário disso é cair na armadilha do que muitos chamam de 'identitarismo', que reduz a questão racial a performances publicitárias e 'representatividade'.
(Antes de mais nada, como é amplamente sabido, Silvio Almeida deixou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania no contexto de graves acusações que parecem inserir-se também em uma disputa política interna. Este texto não se propõe a se debruçar sobre a factualidade das acusações, tarefa que caberia às autoridades competentes, polícia e Judiciário, se for o caso; mas antes se propõe, isso sim, a refletir sobre o tema da identidade e nacionalidade no Brasil, partindo das reflexões de Almeida como uma espécie de pretexto que vem bem a calhar para tanto. Diferentemente do que propoe a lógica identitária do cancelamento expresso, a verdade é que, goste-se ou não do ex-Ministro, trata-se de um autor de obra intelectual relevante, obra esta que continuará sendo estudada e criticada, independentemente das supostas malfeitorias cometidas ou não pela autor dela)
Na publicação supracitada, o acadêmico escreve:
"Este primeiro feriado nacional do dia da consciência negra nos leva a pensar como e se a consciência negra pode ser consciência nacional, ou seja, consciência do que foi, do que é e do que pode ser o Brasil. Refletir sobre isso não serve para esconder o racismo presente na formação nacional ou ainda para nos jogar no individualismo neoliberal que reduz os problemas do povo brasileiro a puro marketing. Que este feriado sirva para nos lembrar de que não haverá vitória contra o racismo sem mudanças sociais profundas."
Com o subtítulo de "Consciência Negra, Consciência Nacional", prossegue Almeida:
"O que chamamos de consciência negra é o resultado de um processo político constituído por lutas intensas (...) que jamais se resumem às identidades individuais. Trata-se de, para além dos indivíduos, de compreender como a experiência de 'ser negro' está vinculada à formação da sociedade em geral (....). O contrário disso é cair na armadilha do que muitos chamam de 'identitarismo', que reduz a questão racial a performances publicitárias e 'representatividade'.
A consciência negra não pode se separar da formação de uma consciência nacional. Nosso desafio, portanto, é fazer com que a luta contra o racismo seja, ao mesmo tempo, uma tomada de posição diante dos grandes desafios nacionais (...). A importante exaltação da africanidade que nos constitui ou a política de cotas não são suficientes para interromper a violência, o trabalho precário e a descrença no futuro que toma conta do nosso povo.
Ao mesmo tempo, refletir como uma consciência negra é também consciência nacional, não significa que não devamos olhar para o mundo ou silenciar diante das contradições que formam o nosso país (...) A consciência negra deve também ser uma consciência global."
Ao contrário do que alguns podem supor, a publicação acima (que critica certa espetacularização identitária e defende uma consciência negra alinhada com uma consciência nacional) não é necessariamente uma ruptura com o que Almeida escrevia e defendia ao longo da vida pública e intelectual. Como bem notou Luiz Roque, em texto de 2020, comentando entrevista de Almeida ao Roda Viva:
Ele [Silvio Almeida] lembrou que o “identitarismo” é criação da direita, da ideologia de supremacia branca, e não da esquerda como insinuado na bancada. Na verdade, a raça é constituída no arranjo econômico de divisão social do trabalho, e as identidades atravessam todas as pessoas, ou seja, não apenas os negros e sua posição subalterna são uma invenção ideológica, mas também os brancos, e suas posições privilegiadas, no sistema produtivo, na mídia, na cultura, e etc (...) Desse modo, para ele [Silvio Almeida] não é possível enfrentar o racismo com políticas de austeridade como o Teto dos Gastos Públicos. É preciso transformar a própria economia e seus pressupostos liberais vigentes, e deu um exemplo concreto: se a mãe do menino Miguel no Recife-PE tivesse uma renda básica e não fosse obrigada a trabalhar e levar seu filho para a casa da patroa em plena pandemia com creches e escolas fechadas, talvez ele ainda estivesse vivo. Ele foi enfático: é preciso investimentos públicos e desenvolvimento econômico para enfrentar o racismo (...).
Portanto, o professor de Direito explicou que para superar o racismo será necessário um Projeto Político, não apenas dos negros, mas em conjunto com os brancos, os quais deverão se engajar no antirracismo para transformar a sociedade para todos. Portanto, para Silvio Almeida, o diálogo será essencial para a construção desse projeto, e citou a massiva participação de brancos nas manifestações antirracistas nos EUA que chacoalharam o país e abriram a possibilidade de mudanças institucionais e políticas importantes. O filósofo terminou a entrevista com uma mensagem de esperança, apontando a necessidade de pensar não apenas em nosso tempo mas nas gerações futuras. (...)
Desse modo, considero que a reflexão de Silvio Almeida sobre racismo estrutural e sobre um projeto de país que seja antirracista é um pilar incontornável do que deve ser um Projeto Nacional de Desenvolvimento. A partir dessa premissa, é preciso começar a pensar nas propostas concretas sobre isso. Olhar para o passado e a experiência de Brizola me parece um bom começo. Buscar as transformações da economia através da sofisticação produtiva e dos direitos sociais que incluam os negros nas melhores oportunidades é o principal. (...) O aspecto ideológico é talvez o mais complexo. A desativação do conceito ideológico de raça com certeza é o programa máximo, ao passo que a proteção e inclusão da identidade negra na identidade nacional como igual é um programa também legítimo.
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Em minha experiência de pesquisa no leste europeu, tenho visto como pode ser explosivo o desalinhamento ente uma determinada identidade grupal e uma identidade histórica nacional. O colapso soviético está relacionado não só a questões econômicas, mas ao drama das identidades etnopolíticas. No dizer do antropólogo Cardoso de Oliveira, os "caminhos da identidade" e suas fronteiras seguem sendo um problema atual. Existem chagas a serem superadas. Existem nacionalismos irredentistas, desagregadores, supremacistas - e existem também, de outro lado, identidades nacionais potencialmente inclusivas, agregadoras (apesar de todas as contradições), como entendo ser o caso da nacionalidade brasileira e a civilização que ela formou, com suas dores e suas belezas (é como Darcy Ribeiro também a entendia).
Seja como for, a declaração de Silvio Almeida surpreende - e, no atual estado do debate nacional sobre o tema, é bem vinda. A "armadilha" do "identitarismo", "que reduz a questão racial a performances publicitárias" e a "representatividade", como bem coloca Almeida, precisa ser evitada - e superada. E é preciso pensar em uma consciência étnico-racial que valore positivamente a negritude (incluindo também a mestiçagem - tão vilipendiada pela tradição racista) e em uma consciência étnico-racial que que não esteja separada da consciência nacional nem em guerra com ela.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
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