Uma versão deste texto foi originalmente publicada na revista Valete, número 14, em abril de 2024. Segue atual.
É um pouco constrangedor escrever sobre Elon Musk ele-mesmo. Não farei isso. O homem é uma espécie de materialização perfeita de tudo que é “boomer” e “cringe”, a própria imagem bem acabada do inadequado: o Tiozão Eterno em espírito; o desconforto e a “vergonha alheia” em forma de bilhões de dólares e gigabytes, em suma. Outros oligarcas do Vale do Silício, é verdade, não ficam para trás; afinal “the Geeks will inherit the world”(“os geeks herdarão a terra”). Mais do que isso: já a herdaram e hoje habitamos o mundo criado por eles, à sua imagem e semelhança - o que inclui sentimento de inadequação (“inadequacy”, como dizem os gringos), selfies, senso de humor deficitário, autismo/síndrome de Asperg (real ou “autoidentificada”), memes, 4Chan/Reddit e, infelizmente, uma grande pitada de pornografia infantil.
Na longa entrevista ao Tucker Carlson (que, sim, assisti inteira, assim como vi inteiro o pronunciamento do Javier Milei, em Davos), o presidente russo Vladimir Putin, lá pelas tantas, diz: “Acho que não há como parar Elon Musk, ele vai fazer o que bem entender”. Acrescentou: “Então, é preciso chegar a um acordo com ele porque esse processo precisa ser formalizado e sujeito a certas regras” (o tema, no caso, era o projeto singelo de Elon Musk de implantar chips em cérebros humanos).
São palavras de Putin, ele-mesmo. O russo é, ele próprio, essa força gélida capaz de colocar em alerta os Estados Unidos e a Europa inteira. Para ele, note-se, não há nada que possa parar o empresário sul-africano. Elon Musk seria uma espécie de gênio da natureza, como o vento ou o curso de um rio que não se pode deter - pode-se apenas tentar canalizar, construir barragens e coisas do gênero (pode parecer o contrário, mas não me esqueci de minha promessa acima e não estou escrevendo sobre Elon Musk, embora continue citando seu nome o tempo todo).
Louis Dumont via na ideia do Indivíduo e, mais do que isso, no individualismo, o centro daquela série de transformações que criaram aquilo que chamamos de Modernidade ou mundo moderno. A ideia moderna de individualidade tem seu pezinho no cristianismo, mas não vem ao caso aqui falar das diferenças entre, de um lado, a Pessoa na antropologia cristã (vide o texto de André Luiz na obra "A Rainha do Meio-dia") e, de outro, o indivíduo moderno. Na Europa, o Romantismo, por sua vez, vem à tona quase na contramão da modernidade e iluminismo, ora como reação - mas essas oposições sempre incluem encontros e aproximações, não? É aí que o gênio do Romantismo e o Indivíduo livre da modernidade dão as mãos.
A ideia do gênio (genius) romântico, de Schlegel, ou de Herder, Goethe (ou mesmo Nietzsche), seja verdadeira ou não, é sedutora. Aquele homem (pode ser também uma mulher) de crânio iluminado, que transforma o mundo e tal. Contudo, mesmo para esses alemães aí, o gênio-indivíduo, no seu ato de criação, abre-se ao “Gênio do Mundo” (“gênio”, afinal, é um Espírito, lembra?). Longe de ser uma força autossuficiente, demiúrgica e prometeica, erguendo-se, titânica, contra tudo e contra todos, em alguma fantasia erótico-psicopática da Ayn Rand, o gênio é antes um homem (ou mulher) que faz convergir em si o Geist ou Espírito de seu Tempo e sua terra e condensa e sintetiza em si o melhor dessas correntes, trazendo à tona uma Boa Nova. Que é nova, mas não ex nihilo.
Seja como for, essa ideia individuocêntrica, com ou sem a nuance acima aludida, abrange domínios muito além das artes e literatura e tem impregnado uma certa visão da História global: a trama do mundo, assim, dependeria dos desmandos e ações desses homens-gênios, que, de alguma forma, para o bem ou para o mal, encarnam e superam o Espírito do Tempo: como Alexandre o Grande, Napoleão. Ou… Elon Musk, aparentemente. É um pouco constrangedor, dizia eu, escrever sobre o homem. Pensando por meio de memes (de que outra forma é possível pensar, afinal?), faço um esforço e tento imaginar o empresário em tal papel - sem escrever sobre ele.
Elon Musk, todo cheirando a brilho e a cobre, peito torto estufado, com uma capa gloriosa, olhando para o vazio no topo de uma montanha, montado num cavalo - ou numa moto Tesla. Ridículo, claro. Mas não se trata, aqui, de simplesmente debochar do homem. Tento imaginar outro contemporâneo meu de forma minimamente gloriosa ou heroica e o resultado é parecido.
Veja, existe algo em nossa época que é quintessencialmente patético - com ou sem Twitter (ou X, que descanse em paz). Os europeus da idade média e Renascença, todo mundo sabe, gostavam de imaginar os Santos da antiguidade e Cristo e os Apóstolos iguais a eles mesmos, ou seja, vestidos com roupas de camponês ou, vá lá, vestidos como aristocrata italiano ou francês etc. Roupas contemporâneas, entenda-se. Vários povos pelo mundo afora que abraçaram a fé cristã têm feito o mesmo (vide os Cristos com traços japoneses etc). É anacrônico e “fora de lugar”, mas é bonitinho e aproxima o que distante é - no tempo e no espaço. Entretanto, é muito difícil imaginar um dos Santos Apóstolos ou (pior!) Cristo, Ele-mesmo, de terno e gravata segurando um Iphone. Ou, vá lá, de calça jeans, tênis e camiseta, o smartphone Samsung na mão. De bermuda e chinelo Havaiana. Cristo sendo entrevistado por algum Youtuber, talvez no Rumble. Cristo pregando, fazendo uma live. Andando pelas ruas da Avenida Paulista ou pelo Leblon - ou na Time Square. É ridículo, revoltante e, para quem é cristão, soa até blasfemo. Por quê?
Ora, um aparelho de telefone é um artefato tecnológico tanto quanto uma espada de aço, uma carruagem, canhões, a pólvora - produtos do engenho humano. Se não levamos a sério nossa época e não conseguimos imaginar nada de sagrado (nem mesmo heroico) habitando nela é porque não a consideramos natural - e não a consideramos natural porque ainda não estamos, nós-mesmos, adaptados ou nela enraizados. Somos puro estranhamento e desconforto. Mais do que isso: em linguagem mais grosseira, nossa anatomia neurocerebral e nosso sistema dopaminérgico cobram seu preço.
O mundo que os geeks criaram e herdaram é uma terra-sem-lei. É que a internet, ela mesma, é uma terra-sem-lei - e ela é onipresente. O off-line só existe para os boomers. Não falo apenas de marcos regulatórios e legislações, evidentemente, mas de protocolos mínimos de etiqueta, convivência, socialidade. Como, exatamente, se flerta por mensagens de texto, por exemplo? O assunto não é banal: envolve demandas sócio-afetivas e, em certo sentido, a própria perpetuação da espécie humana.
Se o(a) leitor(a) googlar, encontrará, sobretudo na anglosfera, inúmeras reportagens sobre a morte do dating e do flerte. A chamada “Geração Z”, com a capacidade de foco/atenção de uma mosca varejeira, não consegue chegar em casa sem GPS, que dirá atender uma chamada de voz sem entrar em pânico. Não é de se admirar que seja, estatisticamente, a geração com o maior número de incels na história da humanidade. E as chacinas em escolas, o neonazismo fetichista, a pedofilia virtual e outras patologias sociais e identitárias não estão tão longe.
Existe outro aspecto, sobre o qual não quero falar. Pense o seguinte: você consegue sentar-se ao trono, no toalete, e fazer sua obra sem a tela na mão, o polegar, como quem não quer nada, deslizando, deslizando?... Ou fica frustrado se perceber que se esqueceu de levá-la? É possível caminhar pelas ruas ouvindo apenas os próprios pensamentos ou fazê-lo, quando a bateria acaba, é tarefa árdua? Você possui, ainda, uma vida interior?
A verdade é que há uma pandemia pouco falada e ela consiste no vício em telas e em “scrolling”, que é o ato de, com o dedo, fazer descer uma timeline sem fim. Trata-se de algo infinitamente pior do que zapear canais, com o controle remoto. As plataformas de redes sociais, com seus logaritmos, são literalmente projetadas para explorar esse vício, ao máximo possível. No Reino Unido, há crianças em jardins de infância que estão literalmente demorando mais para aprenderem a falar e a andar devido ao vício em telas. Eu poderia continuar, por dezenas de páginas, de olhos arregalados, e escrever um Manifesto neo-ludista (Ted Kaczynski, tu não viu nada, rapá…). Mas não é disso que quero falar.
Slavoj Zizek, o filósofo esloveno, é um comunista stalinista que fala um inglês com um sotaque muito carregado e tem uns cacoetes e tiques estranhos, mas ele frequentemente diz coisas interessantes e rende bons memes. Lembro-me de que, certa vez, em entrevista, no Brasil, declarou que seu problema com a Terra Brasilis era a bagunça. Sobre o carnaval, emendou: “por mim iriam a um gulag”. Para além das fantasias totalitárias do gringo marxista que não compreendeu o Brasil (quem pode culpá-lo?), há um elemento de verdade na entrevista (que não encontrei mais), quando ele diz ainda que “o problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas. É isso que os americanos não entendem: se você quiser ser um ser humano verdadeiramente livre – ir aonde você quiser, encontrar quem você quiser –, você precisa de uma estrutura muito rígida de ordem pública, de boas maneiras. Sem isso, nossa liberdade é sem sentido. Liberdade e ordem andam juntas” (salvo engano, foi isso).
Na cabeça totalitária de Zizek, o papel do “Estado” seria basicamente o de carimbador, para “botar ordem”. Seu papel, porém, vai muito além disso. O mundo de Elon Musk foi também gestado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, que criou a ARPANET, os protocolos HTTPS e a internet atual, esse gênio que saiu da lâmpada. E pela NASA e seus satélites TDRS, que transmitem os memes idiotas que vocês postam - num futuro brilhante talvez serão transmitidos, junto com otras cosas más, por satélites Starlink. Em cada etapa da história da Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), andam juntos a figura do empreendedor e a do investimento de um Estado poderoso (geralmente sem rosto), com seus fundos públicos de fomento à pesquisa em longo prazo e universidades. O general Kalashnikov, que o diga (hoje sua invenção é empunhada inclusive por crianças no mundo inteiro). O setor é tão cheio de incertezas e riscos que não pode ser naturalmente atrativo a nenhum investidor sozinho. O próprio Elon Musk-bilionário (aqui não estou falando dele, ele-mesmo) só pode existir como essa criatura híbrida, que é também signatária de inúmeros contratos bilionários com as diferentes agências do governo americano.
Nas civilizações complexas, a cada descoberta, segue-se um período caótico de vale-tudo e, em etapa posterior, alguma regulamentação. O uso em massa dos agrotóxicos, por exemplo, aumenta a produtividade, mas também precisa ser fiscalizado para não acarretar em aumento da incidência de câncer da população. Os acionistas, gananciosos, querem lucrar e as pessoas, mimadas como são, geralmente querem o aumento na produção de alimentos - mas sem câncer, de preferência.
O problema dos gênios que saem da lâmpada e dos desejos que eles atendem e multiplicam é que eles trazem consigo a fumaça. Faz parte do show. Qual caixa de Pandora, ela encobre uma teia profunda de dádivas ocultas, que incluem o déficit de atenção em massa, a depressão, o suicídio adolescente e um crescimento de 70% nas denúncias de imagens de abuso sexual de crianças online, o que inclui uma indústria bilionária, que rende lucros de até 20 bilhões de dólares - molestar uma criança na frente de uma webcam pode render 1.000 dólares por noite a um criminoso semi-amador, segundo reportagem. Já algumas imagens são facilmente acessíveis na rede social do sul-africano e nas redes vizinhas. Nunca existiu na história humana um período em que fosse possível encontrar, em algum tipo de espelho negro ou bola de cristal, por livre demanda e, em breve, até evocar e materializar (pela inteligência artificial na Deep Web) qualquer imagem, por mais monstruosa e aberrante que seja. Este é o mundo em que vivemos. Chesterton via nos cabelos sujos de uma menina pobre ruiva faísca para uma revolução no mundo. Ah, Chesterton, “verá coisas ainda mais vergonhosas do que essas”...
Eu quero poder continuar tendo acesso (quase) instantâneo a (quase) todas as bibliotecas do mundo (obrigado, Alexandra Elbakyan!), mas, mimado que sou, não quero viver num mundo em que os jovens não consigam prestar atenção em nada por mais de três minutos seguidos e nem num mundo em que o pior tipo sanguinário de obscenidade e monstruosidade imaginado no filme “A Serbian Film” esteja literalmente ao alcance de um clique. Ou em um mundo em que o Only Fans e similares seja um dos pilares da economia.
A intervenção regulatória, necessária e premissa básica da civilização, também abre a janela para a imbecilidade burocrática e uma miríade de novos problemas. Sim, os Estados usarão o pretexto da regulamentação da internet para censurar e você, nos seus tweets, será pressionado a defender ou a orgia da desregulamentação (“Viva la libertad!”) ou a tirania digital e criminalização das “fake news” (quem guarda os guardas?).
A solução, evidentemente, não é destruir a casa e ir morar ao relento, mas antes reformar a casa ou construir uma nova. O problema é que a reforma e a manutenção nunca terminam - como nunca terminam a imbecilidade e a malícia humana.
Não podemos parar o Twitter (ou o X ou a próxima porcaria). Não podemos parar os putins e elon musks deste mundo. Eles farão o que bem entenderem - e Deus nos proteja. Quanto a mim, me reservo, ao menos, o direito de resmungar (este texto era originalmente um tweet, mas não coube no limite de caracteres e, entenda, não sei criar thread).
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
Contribua com nosso trabalho (pix):
O texto é apenas uma ode anti-individualista propugnada por quem, como sempre, não ostenta as condições de promover uma civilização ascendente no sentido de ser tonificada por esse amálgama espiritual e quer passear intelectualmente sobre isso. E como esse discurso anti-individualista é pseudo-espiritual e sempre desemboca num coletivismo materialista de esquerda, a turminha dissidente do Nova Resistência e seus penduricalhos duguinianos segue nesta nessa besteirada contra Musk, a bola da vez.
Quer antes dizer antes que o gênio é uma cúspide da decadência individualista (que o autor mesmo não superou, diga-se de passagem, pois, essa tuma é sempre muito ciosa de sua sofrível qualidade intelectual, seu eguinho, para dizer-se anti-individualista) para depois, então, dizer que Musk não é gênio, (certamente…