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Terceira Roma e Moscou: universalismo e paródia

A Rússia tem um senso de auto importância gigantesco, e o associa a mitos de grandeza universal. Toda grande civilização faz isso, não são apenas os russos. Os chineses, por exemplo, se veem como o Império do Meio. Os EUA também se consideram os reis da cocada preta, munidos com um senso missionário de ordem global. Nesse ponto, os ianques são o maior exemplo de certo tipo de universalismo militante e derribador, o Ocidental, que "acha feio o que não é espelho'' e se imagina na obrigação não apenas de se propagandear pelos quatro cantos do mundo como também de modelá-lo ao seu bel prazer para melhor governá-lo. É nonsense afirmar, como têm afirmado alguns nacionalistas, que o universalismo russo seja uma ''paródia'' do Ocidental pelo simples fato de que lhe é anterior em muitos séculos.




É justamente o contrário. O universalismo típico do Ocidente bebe em fontes muito mais antigas, às quais parodia com gosto, como vimos na cerimônia de abertura de Paris 2024, que distorceu, de uma tacada só, Cristo e os Apóstolos, a Eucaristia, a espiritualidade dionisíaca, e A Última Ceia -- um dos símbolos mais vivos do Renascimento.


O mito da Terceira Roma tem raízes mais profundas do que uma simples propaganda russa. Ele nasce da ação de monges hesicastas ligados ao Monte Athos, na Grécia, que tinham a intenção de consolidar Moscou como o centro da Igreja Russa -- até o século XIV vinculada à Constantinopla, sua "Igreja Mãe". Nesse sentido, foi decisiva ação de São Filoteu de Constantinopla, um dos mais importantes discípulos de São Gregório Palamas, e a de seu discípulo São Cipriano de Moscou, autor d'A Vida de Pedro e aliado de São Sérgio de Radonezh, uma das figuras mais importantes da expansão do hesicasmo e do monasticismo na Rússia. São Filareto era de Tessalônica, São Cipriano era búlgaro -- a Bulgária era um dos principais centros intelectuais cristãos-ortodoxos --, mas participavam do esforço de unir as igrejas eslavas em torno de Moscou, e por sua vez unir indissoluvelmente Moscou à herança de "Bizâncio".



É desnecessário dizer que Constantinopla se via e se entendia, de modo correto, como Império Romano ("do Oriente"). E o Imperador Romano cristão reivindicava um domínio universal. Isso não é ''invenção russa'': está incrustado nas próprias origens de Roma, e avalizado pelo cristianismo tradicional por meio da ideia de Katechon, conceito usado por São Paulo em uma de suas Epístolas [vide Tessalonicenses, capítulo 2, versículos 1 a 7] para se referir àquela pessoa ou força que evita ou obstaculiza a chegada do reino do Anticristo. O Katechon foi interpretado pela Igreja como uma referência ao Imperador Romano - de modo que, uma vez que Roma caiu (a "1a Roma"), a questão era identificar quem ou o quê continuava a agir como Katechon. Em Constantinopla essa dúvida não existia, já que o Império Romano ['do Oriente'] continuava de pé.



Os esforços dos monges athonitas e a política do próprio Império Romano do Oriente fizeram de Moscou a principal candidata à herdeira de Constantinopla [após a queda da mesma], algo que já era debatido no século XIV na medida em que se tornava evidente que "Bizâncio" não resistiria aos ataques vindos do Ocidente e do Oriente. O conceito de translatio imperii [''transferência do Império''] se fortaleceu em meio às disputas teológicas do Concílio de Florença, à destruição contínua do poder mongol na Rússia [sendo a Batalha de Kullikovo um de seus pontos-chave], à captura de Constantinopla pelo Império Turco [interpretada dentro e fora de ''Bizâncio" como uma punição divina], e em meio ao casamento de Ivan III, o Grande, com Zoé Paleóloga, sobrinha do último Imperador Romano do Oriente.


É a partir de todos esses elementos acima mencionados que se desenvolve, no século XV, a ideia de Moscou como a "Terceira Roma", uma construção realizada sobretudo pela Igreja, e ainda mais particularmente por monges hesicastas e por governantes tanto de Constantinopla quanto de Moscou em torno de um conceito apocalíptico cristão: Katechon. Não tem nada a ver com uma herança cultural da civilização romana-latina ("Império Romano do Ocidente"), até porque os vínculos diretos eram com Constantinopla, que reinava sobre o Império Romano do Oriente, expressão de uma matriz civilizacional ainda mais antiga, rica e muito mais sofisticada intelectualmente que a própria Roma e a Península Itálica: as civilizações mediterrâneas que gravitavam em torno do Egito, da Grécia, da Síria e do Helenismo. De todo modo, o mito da Terceira Roma tem conteúdo principalmente 'político', e não cultural. Esse mito político não se desenvolveu apenas em terreno cristão-ortodoxo.


Os católico-romanos também o mantiveram, interpretando-o, geralmente, como a restauração do Império Romano, ou a chegada de um Grande Rei Cristão. Alguns místicos católico-romanos identificam este monarca com a restauração da Realeza francesa, aquela mesma que foi derrubada pelas Revoluções Iluministas, liberais e burguesas celebradas pelo Ocidente atual, como pudemos ver também na Cerimônia de Abertura de Paris 2024. Embora não seja doutrina oficial da Igreja Católica, a esperança no retorno do Grande Rei sempre esteve presente entre fiéis e místicos católico-romanos desde o final do século XV, momento em que a mesma ideia estava sendo sistematizada de vez em Moscou. E ela reflete também mitos mais antigos, profundamente ligados ao cristianismo tradicional e ao Império Romano do Oriente. Um exemplo é o Mito do Rei Marmóreo [Marmaromenos], cujo corpo incorrupto estaria velado em alguma caverna oculta, e que ressuscitaria nos últimos dias para liderar os cristãos. Essa história remonta aos séculos XIII e XIV, quando o Império Romano do Oriente se encontrava em Niceia por causa da debaclé provocada pelos cruzados latinos. Ainda hoje a esperança escatológica no Rei Marmóreo é difundida em meios cristãos-ortodoxos.


Eu poderia continuar, incluindo toda a mitologia em torno do ciclo arthuriano, que se espalha pela Europa Medieval e Moderna e traz o mesmo tema da Restauração de uma Realeza que renovaria a Ordem Celeste para a terra, e que reuniria os fiéis para o grande combate contra o Mal no fim dos tempos. Mas imagino que o ponto principal foi exposto: o mito da Terceira Roma é apenas expressão do próprio Universalismo e Escatologia cristãos, presentes tanto entre eslavos quanto entre gregos e latinos. É o Ocidente Iluminista e liberal que parodia este mito, se contrapondo a ele e visando substituí-lo. E isto é feito de modo explícito, como se viu em Paris 2024.

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