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Tradicionalismo, Perenialismo e os erros de Teitelbaum, em “Guerra pela Eternidade” - parte 1

O antropólogo britânico Benjamin Teitelbaum, professor de etnomusicologia, lançou, em 2020, seu livro “War for Eternity: The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right”, que, rapidamente, no mesmo ano, foi traduzido e publicado no Brasil, pela editora da Unicamp, com o título “Guerra pela eternidade: O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista”. O jornal da Unicamp. na manchete de uma entrevista com o autor, descreveu assim a obra: “o livro expõe o pensamento Tradicionalista, uma das facetas mais conservadoras da nova direita mundial”.



Tradicionalismo”, no caso, refere-se à escola de pensamento de escritores esotéricos europeus do século XX ligados à Escola Perene ou Perenialismo, como René Guénon, e Frithjof Schuon. São, grosso modo, autores preocupados com questões metafísicas, pensadores que acreditavam existir uma Tradição de origem não-humana. A imprensa tem aclamado Benjamin Teitelbaum como grande especialista nesse assunto. Mas a verdade, sem meias palavras, é que o seu livro contém imprecisões e problemas graves que chegam a distorcer o objeto estudado - imprecisões estas reiteradas pelo autor em diversas entrevistas. Vou começar apontando alguns erros:


Um dos aspectos menos compreendidos da obra dos autores chamados de ''tradicionalistas'' é a visão cíclica do tempo (diferente da visão moderna de tempo linear). Muita gente que banca o especialista nas obras de Guénon, Schuon, Martin Lings etc. só consegue pensar em ciclos da maneira mais simples e superficial possível. O hoje famoso Teitelbaum chegou a uma abordagem que só pode ser qualificada de ''bright'', nos termos em que Richard Dawkins difundiu o ''elogio'': bastaria, segundo Teitelbaum, considerar a doutrina cíclica como o inverso da temporalidade progressista e unidirecional iluminista.


Se a moderna ideologia do progresso se fundamenta em um tempo que é uma sucessão linear de eventos conectados por uma causalidade eficiente e direcionados para uma melhora civilizacional progressiva (“progresso”, “evolução”), o Tradicionalismo, diz Teitelbaum, seria o oposto disso: um conceito de tempo igualmente linear que, de um momento ideal (espécie de Idade de Ouro), vai se sucedendo em uma série irrefreável de pioras. Esse modelo tosco é um mal entendido da doutrina dos ciclos tal como era entendida pelos autores tradicionalistas. Partindo desse mal entendido, o acadêmico pode insistir em declarações estapafúrdias - por exemplo, afirma, como veremos, que ''tradicionalistas'', na política, se devotam ferreamente à ideia de que ''quanto pior, melhor''. O problema é que não é essa a doutrina dos ciclos - este é o modo rasteiro como o autor a encara, achatando toda e qualquer concepção de tempo nas medidas da percepção do homem iluminista.


Teitelbaum iguala a doutrina dos ciclos no Tradicionalismo a uma perspectiva cronológica, regida por lei férrea de decadência. Seria uma inversão da moderna ideologia do progresso (segundo a qual os níveis de civilização aumentam naturalmente com a passagem dos anos).


Teitelbaum não entendeu, contudo, que o próprio ''tempo cronológico'' é um dos elementos no interior da 'temporalidade tradicional'. É ''parte'', mas não pano de fundo. A doutrina metafísica dos ciclos implica outras formas de relação, regidas por diferentes níveis de realidade, que interagem por analogias, como é típico do pensamento tradicional.


Este erro do escritor é, na verdade, o ponto que fundamenta uma de suas teses, tese esta que ele, posteriormente, negou ter defendido, em postagem no Twitter. A tese em questão é a de que, quando envolvidos em política, os tradicionalistas são ''aceleracionistas'', isto é, investem no ''quanto pior, melhor'', e tem ação sempre destrutiva - para, de certa forma, acelerar o processo (através de um cataclisma etc).


Teitelbaum pensa assim não só por incompreensão da doutrina dos ciclos, mas também porque generalizou uma percepção que captou em Steve Bannon, a saber, a ideia de "Homem contra o Tempo'', ideia presente também na obra de Savitri Devi (esta uma neonazista hitlerista esotérica), ideia que ele interpreta de forma literal e também aceleracionista e generaliza para autores com um pensamento metafísico sofisticado como Guénon e para todos os “tradicionalistas” em geral, confundindo e associando tradicionalismo à “alt-right” (a nova direita anglo-saxã), a populismo de direita etc. Em suma, tratar-se-ia de mais um novo fenômeno de direita radical ou fascistoide.


No campo empírico mesmo, esta tese não se sustenta. O livro de Teitelbaum, tão citado por dez entre dez recém-especialistas no assunto, esqueceu-se, por exemplo, de analisar um dos maiores representantes do Tradicionalismo no mundo político: o Rei Charles III (sobre o assunto, vide também esta live). Esqueceu-se talvez porque este exemplo não caiba em sua narrativa, narrativa na qual o Tradicionalismo se mistura necessariamente com a “alt-right” ianque e o populismo fascista europeu. O Rei Charles III, contudo, é um tradicionalista (ou alguém influenciado por ideias tradicionalistas) tão ou mais antigo que Dugin, Olavo de Carvalho e Bannon (sendo que é muito discutível se esses três últimos sequer podem ser considerados tradicionalistas: Alexandr Dugin tem várias outras influências que o afastam de Guénon, por exemplo - tema sobre o qual escreverei mais no futuro - e Olavo, por sua vez, adota uma gramática individualista, no mínimo em choque com ideias centrais do Tradicionalismo). Em todo caso, a leitura política que o Rei Charles faz do tradicionalismo apresenta-se na forma de um comunitarismo e de um ecologismo/ambientalismo radical - algo bem diferente de qualquer fascismo, populismo ou “alt-right”. Como tenho comentado em diversas ocasiões (vide, por exemplo, esta live), existem Tradicionalistas/Perenialistas ambientalistas, anarquistas, conservadores desinteressados em política etc (coisa que Mark Sedgwick admite). A tese de Teitelbaum a este respeito é equivocada, assim como a recepção do tema na imprensa brasileira e imprensa ocidental de modo geral.


Teitelbaum chegou ainda a afirmar que não havia nenhuma crítica tradicionalista ao nazismo. Recordo-me que, há catorze anos, perguntaram sobre isso em tópico da saudosa “Olavo de Carvalho do B” (“comunidade” ou fórum da extinta rede social Orkut). Tratava-se de um grupo criado inicialmente para criticar as ideias de Olavo de Carvalho, mas que, posteriormente, transformou-se em um fórum para a discussão de vários assuntos, inclusive o perenialismo/Tradicionalismo, No tópico em questão, respondi citando trechos da obra do próprio Guénon que demonstram como a alegação não se sustenta (no print-screen abaixo, usando o nickname Constantor). Aliás, em alguma medida, até mesmo Mark Sedgwick (esse um especialista em Tradicionalista mais qualificado) também repetia a mesma ideia oriunda do livro sensacionalista O Despertar dos Mágicos). Em breve, publicarei resenha sobre o livro novo de Sedgwick.



"Não é preciso dizer que deixamos inteiramente de lado o uso completamente artificial e inclusive antitradicional da suástica pelos "racistas" alemães, que, sob a denominação fantástica e algo ridícula de hakenkreuz, fizeram dela, muito arbitrariamente, um signo do antissemitismo, sob o pretexto de que este emblema haveria sido próprio da suposta "raça ariana", enquanto que, pelo contrário, é um símbolo realmente universal"
René Guénon, "O Simbolismo da Cruz" (1931)

Em uma sequência deste texto, falarei mais sobre outros problemas na obra de Teitelbaum.


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