Traduzido e adaptado, pelo próprio autor, de "Trump a Peacemaker? Analyses of His Political Profile Vary Wildly", originalmente publicado em 5 de julho de 2024
Donald Trump, um pacificador?
É precisamente assim (um "pacificador") que Robert C. O'Brien (ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA) descreve o histórico do ex-Presidente dos EUA – ainda que se trate de uma "paz pela força" - como na expressão famosa do ex-Presidente Ronald Reagan (1981 - 1989), que Trump repetiu em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) em 2020. As análises sobre perfil político de Trump podem, de fato, variar enormemente, dependendo de a quem se faz a pergunta (vide abaixo). O’Brien, em qualquer caso, prevê que, no que diz respeito à política externa, pode-se esperar um realismo com um “sabor jacksoniano1” caso o Republicano2 ganhe as eleições.
Andrew Byers (pesquisador não residente do Albritton Center for Grand Strategy da Texas A&M University) e Randall L. Schweller (professor da Universidade do Estado do Ohio - Ohio State University -e diretor do Programa para o Estudo das Políticas Externas Realistas) possuem opiniões semelhantes a esse respeito.
Segundo eles, Donald Trump é, no fundo, um “verdadeiro realista”, isto é,
alguém que evita visões idealistas3 e ideológicas em relações aos assuntos globais, preferindo políticas de poder centradas no problema do poder real [power politics].
Para os especialistas acima citados, no primeiro mandato de Trump, tais
impulsos realistas foram silenciados e por vezes interrompidos por funcionários de segurança nacional agressivos que não partilhavam a sua visão.
No entanto, afirmam, “tendo aprendido que quem faz a política pública é a equipe [o quadro de funcionários]”, Trump “não cometerá este erro novamente”.
Byers e Schweller prevêem, assim, que uma possível nova presidência de Trump terá “talvez a política externa dos EUA mais contida na história moderna” (no sentido de menos intervencionista).
A ideia de garantir a paz através de um espírito de prontidão para entrar em guerra é melhor resumida na cultura política americana pelo aforismo que Theodore Roosevelt4 gostava tanto de repetir: “fale com a voz mansa, mas carregue um porrete grande; assim você vai longe”.
Parece que falta a Trump a parte da suavidade – isso fica bastante claro se levarmos a sério a história das suas tratativas com as lideranças do Talibã, por exemplo [ele supostamente ameaçou pessoalmente de morte o líder do Talibã em uma reunião] (claramente um erro, considerando-se como outras potências hoje se envolvem pragmaticamente com os talibãs). Mesmo a diplomacia do “big stick” de Roosevelt, de qualquer forma, não consisia em pura intimidação: ela incluia, em teoria, pelo menos, a ideia cavalheiresca de que se deve dar aos adversários a a oportunidade de ao menos manter a honra ("save face") no caso de uma derrota.
O’Brien e os outros especialistas citados têm razão no que diz respeito ao histórico relativamente “pacífico” de Trump, na política externa, enquanto foi Presidente entre 2017 e 2021. Há pelo menos um fundo de verdade nisso e é preciso admiti-lo. Existe, no entanto, como sói ocorrer, um outro lado da moeda em quase todos os exemplos que esses analistas enumeram ao defender o seu ponto de vista.
O'Brien chega ao ponto de afirmar que
Trump estava empenhado em evitar novas guerras e as intermináveis operações de contrainsurgência, e a sua presidência foi a primeira desde a de Jimmy Carter, em que os Estados Unidos não entraram numa guerra guerra nova nem expandiram um conflito existente.
Tal afirmação depende da definição de “guerra”, é claro. A afirmação é até contraditória, pois O’Brien afirma, em seguida, que:
Trump também terminou uma guerra com uma rara vitória dos EUA, exterminando o Estado Islâmico (também conhecido como ISIS).
Ora, a respeito da derrota do grupo terrorista ISIS, O’Brien, embora enalteça o candidato Republicano, esquece-se de mencionar o papel fundamental desempenhado pela Rússia e pelo Irã na luta contra o ISIS (sem falar do Hezbollah, outro ator fundamental - considerado o principal protetor dos cristãos no Levante). São fatos notórios, mas é evidente que seria politicamente incorreto mencioná-los.
Outros analistas, como Hal Brands (um estudioso da Escola de Estudos Internacionais Avançados de Johns Hopkins), também acreditam fervorosamente no “isolacionismo” de Trump – porém o vêem como potencialmente apocalíptico. Para Brands, uma nova presidência de Donald Trump poderia “fragmentar a Europa”, trazendo-a de volta aos “padrões mais sombrios, mais anárquicos e mais iliberais do seu passado”. Ou seja, para ele, sem o guarda-chuva americano (ameaçado pelo suposto isolacionismo de Trump), a Europa voltaria a ser um inferno fascista de guerras, conflitos étnicos e totalitarismo.
Eu escrevi em março (de 2024) sobre como o suposto “isolacionismo” do ex-Presidente americano deve ser encarado com cautela. Basta recordar que foi ninguém menos que Trump quem assassinou o general iraniano Soleimani, só para começo de conversa. É também famosa a frase recente dele (2024) sobre a Palestina: disse que Israel deve “acabar com o problema”. O ex-Presidente Republicano pode não ser o fomentador insano da guerra a todo custo que a mídia americana, em grande parte Democrata, e alguns analistas dizem ser (e não é como se Biden, em contraste, fosse um pacifista). Donald Trump prefere recorrer à guerra econômica (em vez de optar sempre pela intervenção militar). Trump, no entanto, obviamente não é nenhum herói “anti-imperialista”, como pretendem as fantasias de alguns dos analistas mais ingênuos.
O Republicano de fato “facilitou os Acordos de Abraham” para trazer “paz” a “Israel e três dos seus vizinhos no Médio Oriente mais o Sudão” (como escreve O’Brien). No entanto, os mesmos Acordos, embora tenham atraído novos aliados (para Israel), causaram um grande aumento nas tensões em toda a África, no Médio Oriente e além. O acordo de paz Israel-Emirados Árabes Unidos, em 2020, por exemplo, provocou imediatamente protestos na África do Sul – em 2022, a nação africana declarou Israel um “Estado de apartheid”. O nexo Golfo Pérsico – Chifre da África sempre foi um lugar estratégico para Israel, sendo esta uma região onde os interesses militares e comerciais se sobrepõem. Ora, tais acordos de normalização (das relações entre países árabes e Israel) também incluíram um aumento da presença militar israelense na África e Oriente Médio – isso ficou ainda mais claro com o exercício naval conjunto de Israel em 2021 com os EAU e o Bahrein. Além disso, já em 2021, escrevi (tal como inúmeros outros escreveram) que o conflito israelense-palestiniano polarizou ainda mais o Médio Oriente e inflamou a opinião pública contra os Acordos de Abraham.
Os mesmos acordos de normalização, juntamente com a questão do Sahara Ocidental, aumentaram tremendamente as tensões entre a Argélia e Marrocos, ao ponto de perturbar os interesses europeus relacionados a questões energéticas. Em Dezembro de 2020, Trump reconheceu as reivindicações de Marrocos sobre a região disputada do Sahara Ocidental (numa espécie de “quid pro quo” depois de Marrocos ter normalizado as suas relações com o Estado judeu). Ao fazê-lo, o ex-Presidente dos EUA alimentou e intensificou contradições pré-existentes entre a região do Magrebe e a União Africana, e ainda dentro da própria região do Magrebe – no que diz respeito à então “guerra esquecida” do Sahara Ocidental, atirou gasolina ao fogo. Ora, aumentar tensões a nível mundial é uma forma bastante estranha de se fazer a paz!
Trump deu aos Acordos de Abraham um lugar central na sua política externa, e Biden herdou isso. A dura realidade é que as raízes da atual crise no Oriente Médio residem em grande parte precisamente nesses acordos. Com a escalada do conflito na região do Oriente Médio, o centro de gravidade das tensões globais parece ter-se deslocado parcialmente da Europa Oriental. A atual crise com os Houthi no Mar Vermelho, por um lado, é em grande parte um efeito colateral da catastrófica campanha israelense apoiada por Washington na região do Levante. Acontece que Trump é, ao que tudo indica, um apoiador incondicional de Israel ainda mais fervoroso do que foi o seu adversário Joe Biden. E isso pode ser uma má notícia para o mundo.
As opiniões expostas neste artigo não necessariamente refletem a opinião do Sol da Pátria
Notas de rodapé
Observação: em português, não se costuma grafar como nome próprio adjetivos desse tipo. Escrevemos, por exemplo, petista sem P maiúsculo (e não "Petista") para nos referirmos aos filiados ao Partido dos Trabalhadores (PT). Neste caso específico, estamos grafando a palavra Republicano (no sentido de filiado ao Partido Republicano dos EUA) com R maiúsculo para eliminar qualquer ambiguidade, assim evitando a confusão com a palavra "republicano" na acepção geral do termo - e o mesmo vale para os Democratas. É uma coincidência histórica interessante que o nome ds dois únicos partidos políticos de facto nos EUA reflita uma contradição interna americana entre república e democracia - mas este é outro tema.
Andrew Jackson foi Presidente dos EUA, pelo Partido Democrata, entre 1829 e 1837. A doutrina jacksoniana, como alguns a descrevem, envolve uma crença excepcionalista no Destino Manifesto dos EUA, certo grau de populismo centrado nos valores do "homem comum" e discurso hostil às elites financeiras. Envolve ainda certo realismo diplomático e foco na classe trabalhadora branca. O Republicano Donald Trump, às vezes, é comparado a Andrew Jackson.
Na linguagem da geopolítica e das Relações Internacionais, a posição realista (de
Hans Morgenthau e outros) seria aquela que enfatiza os interesses nacionais das grandes potências num sistema global "anárquico". Já a posição idealista (de James T. Shotwell e outros), por sua vez, seria aquela que que enfatiza a filosofia política interna de um dado país como sua régua de conduta em questões internacionais. Grosso modo, costuma-se dizer que os realistas seriam mais pragmáticos.
Theodore Roosevelt, Republicano, foi Presidente dos EUA entre 1901 e 1909. Sua política externa era relativamente isolacionista (em relação à Europa e Ásia), com foco no entorno geoestratégico dos EUA e na América Latina. É associada a ele a chamada "diplomacia do porrete grande" ou do big stick - o foco era defender os interesses dos EUA no continente (contra as potências europeias rivais).
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