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Dyego Phablo

Vargas: para sempre no coração das massas

Aos 19 de abril de 1882, há 142 anos, nascia em São Borja, Rio Grande do Sul, Getúlio Dornelles Vargas, filho do estancieiro dos pampas Manuel Nascimento Vargas e Cândida Francisca Dornelles, a dona Candoca.


Os Vargas, como eram chamados, alinhavam-se na política local aos "chimangos", enquanto os Dornelles eram próximos dos "maragatos". A diferença é qVargas: Para Sempre no Coração das Massasue os chimangos eram ideologicamente republicanos e filiados ao pensamento de Júlio de Castilhos, político gaúcho positivista que deu origem à ideologia política do castilhismo, e os maragatos eram federalistas, liberais, próximos de Gaspar Silveira Martins.



Desde cedo, Vargas foi influenciado por essas diferenças do clima político familiar e, embora ideologicamente tenha recebido mais influência do castilhismo [pelo menos até a Revolução de 1930, quando passa a fazer algumas considerações revisionistas sobre Augusto Comte], essas ponderações marcaram sua própria personalidade, pois, ao mesmo tempo em que vinha de uma localidade herdeira da mística guerreira do gauchismo, da tradição missioneira, de conflitos de fronteiras e da charqueada que incutia no homem a necessidade de "matar com as próprias mãos, [e] fazer jorrar o sangue de outras vidas para garantir a sobrevivência dos seus", como descreveu Lira Neto [1], também era associado à figura da raposa dos pampas, bicho astuto e esperto, ao ponto de o jornalista Chatô [Francisco Assis Chateaubriand Bandeira de Mello] ter decretado: "Maquiavel é pinto para o Sr. Getúlio Vargas".


Getúlio foi, inegavelmente, o tipo de figura rara na política que aliou uma boa formação intelectual e bagagem cultural com habilidade política. Era leitor de Comte, Goethe, Spencer, Nietzsche, Euclides da Cunha, Raul Pompéia e, sobretudo, de Saint-Simon, de quem teve influência para a formulação do que em momento posterior veio a se chamar Trabalhismo - com as contribuições decisivas de Alberto Pasqualini.


O nacional-desenvolvimentismo foi a ideologia política pregada por Getúlio, que se amadureceu com o decorrer do período no poder, a partir da Revolução de 1930, e entrou definitivamente no seu repertório político na conturbada década de 1950. Paralelamente, Vargas também elaborou em seu ideário o Trabalhismo, que consistia na incorporação das emergentes classes trabalhadoras ao processo político e social através da mediação dos sindicatos e associações profissionais. Devemos sempre lembrar que o Trabalhismo se originou em um ambiente econômico de bastante crescimento das forças produtivas, o que ia ao encontro do realismo de Pasqualini, segundo o qual não adiantava "socializar a miséria" [2].


Essa tradição defendia a intervenção do Estado na economia no sentido de que o Estado atuaria onde e quando a iniciativa privada não pudesse atuar, seja porque ela não teria interesse, seja porque ela sozinha não disporia dos mecanismos e ferramentas institucionais para alavancar um setor. Foi assim que surgiu quase tudo de grandioso do Brasil que até hoje está aí: Petrobrás, Eletrobrás [e a subsidiária do Vale do São Francisco, hoje Chesf], BNDES, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Banco do Nordeste etc. A infraestrutura de base - minério, aço e petróleo - nasceu assim. Em nenhum desses casos existia um empresariado que quisesse assumir os riscos do empreendimento. O "Estado intervir na economia", portanto, não tem relação com "coletivizar os meios de produção" e "comunismo", do qual, inclusive, o próprio Vargas era crítico, o que ficava claro até mesmo nas respostas das provas escritas de graduação [3].


O fato é que o nacional-desenvolvimentismo foi uma tradição genuinamente nacional, que, além de ter influenciado Roosevelt na elaboração do New Deal, como reconhece o próprio presidente norte-americano por ocasião de sua visita ao Brasil [4], propiciou que já em 1933 a renda nacional tivesse começado a crescer, o que nos EUA se deu em 1934 [5].


Embora o neoliberalismo, por influência do liberalismo igualitário/igualitarismo liberal [Dworkin, Ralws etc] [6], tenha confinado a palavra "justiça social" apenas a debates de "compensações" [bolsas, cotas etc], na verdadeira tradição Trabalhista ela tem significado mais estrutural de usar o Estado como mola propulsora do desenvolvimento industrial e soberano, buscando inserir o país em outra dinâmica na divisão internacional do trabalho, para além de mero fornecedor de matéria-prima. Daí a frase lapidar de Vargas de que "não há justiça social sem desenvolvimento e não há desenvolvimento sem soberania”.


Mas não importava a Getúlio apenas a dimensão econômica do nacionalismo, mas sim igualmente a cultural, tanto na afirmação dos nossos valores e cultura, como também no interesse de dotar o país simbolicamente de elementos espirituais que reconhecessem a nossa singular unidade na variedade. Para além do mero discurso hoje em voga de "representatividade", o governo de Vargas [1951-1954] contou com uma assessoria de nordestinos como Rômulo Almeida [baiano], Ignácio Rangel [maranhense], Alberto Guerreiro Ramos [baiano], etc, alguns dos quais estiveram na linha de frente da elaboração de projetos grandiosos como Eletrobrás e Petrobras. Quem comandou a junta provisória que chegaria ao poder com a Revolução de 1930 foi o capitão maranhense Augusto Tasso Fragoso.


A associação do Brasil com o samba, a capoeira [descriminalizada em 1936], o futebol e a mestiçagem - numa época de predomínio de racismo científico - é fruto da Revolução de 1930. Em 1953, Vargas teve um clássico encontro com Mestre Bimba, ocasião em que afirmou que "a capoeira é o único esporte verdadeiramente brasileiro".


Não é absurdo imaginar que esse reconhecimento, e também a compreensão do Brasil como uma nação mestiça, tenham se originado em Vargas pelo fato de que seu melhor amigo de infância foi o menino Gonzaga, com quem dividiu muitas peripécias. O pai de Vargas, aliás, colaborou na luta pelo abolicionismo, pois antes da Lei Áurea concedeu a carta de alforria a todos os escravos da estância.

Tanto o horizonte material de crescimento econômico, como o cultural de pertencimento espiritual marcaram a Era Vargas, e foi isso o que tornou a República legítima para as classes populares, já que a implantação do regime foi feita sem participação popular. A República, portanto, saiu, em um período de 50 anos, do completo ostracismo para multidões indo às ruas lamentando o suicídio de Getúlio [7]. Para o enterro do presidente, muito embora tivesse sido eleito em 18 dos 24 Estados em 1950 [8], apenas 02 governadores [um deles Juscelino Kubitschek] compareceram. Já era o prenúncio do Brasil real versus o Brasil oficial e, para agravar, dentro do contexto de polarização da Guerra Fria, que influenciou o suicídio. Não se entende 1964 sem 1954.


Nesse momento de catatonia política, devemos nós, todos os brasileiros, revisitar nossa verdadeira tradição, que nos deu bons frutos, e adaptá-la aos novos tempos. A tradição não nos aprisiona ao passado, ela liberta para o diálogo do que foi e continua sendo.

Viva Getúlio!


Notas:

[1] NETO, Lira. Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930). 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 33.

[2] PASQUALINI, Alberto. Bases e Sugestões para uma Política Social (obras completas, volume I). Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, Introdução, IX-X.

[3] DUTRA FONSECA, Pedro Cezar. Gênese e precursores do desenvolvimentismo no Brasil. In: ZAHLUTH BASTOS, Pedro Paulo; DUTEA FONSECA, Pedro Paulo. A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012, p. 21-51.

[4] LIMONCIC, Flávio. Os inventores do New Deal: Estado e sindicato nos Estados Unidos dos anos 1930. 2003. 289p. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 16.

[5] FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 193.

[6] Sobre os pressupostos do liberalismo igualitário, cf. MOTTA FERRAZ, Octávio Luiz. Justiça Distributiva para formigas e cigarras. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/sjmCX5CG4xPD5CvJSFyfj4g/?lang=pt.

[7] Esta observação importante é mencionada por Mércio Gomes, em GOMES, Mércio. O Brasil Inevitável - ética, mestiçagem e borogodó. 1 ed. Rio de Janeiro, Topbooks, 2019.

[8] VILLA, Marco Antônio. Um país chamado Brasil - a história do Brasil do descobrimento ao século XXI. São Paulo: Planeta, 2021, p. 239.

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