Uma das maiores pendengas entre Tradicionalistas é a divergência entre René Guénon e o Barão Julius Evola sobre os vínculos entre a "Autoridade Espiritual" e o "Poder Temporal" -- como o francês colocava o problema. Esta questão tem repercussões em vários níveis, não apenas na organização social.
Na varnashrama hindu (o sistema das varnas a partir do qual se desenvolve a ideia de "casta"), os brâmanes (sacerdotes) são uma casta 'superior' à casta dos Ksatryias ou xátrias (guerreiros). Os primeiros representam a 'palavra' do Macantropo [Homem Universal], e se ocupam da transmissão da doutrina, tanto em forma expositiva e lógica, como também mistérica e iniciática. A vocação brâmane se vincularia a Vishnu [divindade que sustenta o universo] e à guna [ou "tendência"] conhecida como sattva, de caráter luminoso e ascendente em relação aos graus de ser. Os homens com essa vocação seriam os ''intelectuais'', ''contemplativos'' e ''mestres'' em dada civilização. Possuem atividades sacerdotais, artísticas e professorais e se vinculam prioritariamente ao conhecimento e sua difusão.
Os Ksatryias, por sua vez, representariam os membros do Macantropo e, portanto, seu potencial para ação em dado mundo ou ordem de manifestação. Sua vocação está ligada a Brahma, o demiurgo criador, e à guna conhecida como Rajas [na verdade, uma mescla entre Sattva e Rajas], que expande ou consolida determinada organização ou ordem ou co-possibilidades em dado plano ou âmbito da realidade. Os indivíduos que pertencem a essa varna, nesse modelo, exercem o poder, o governo e a administração de dada sociedade. Estão também ligados às funções de Justiça e Guerra.
Se fôssemos comparar estas varnas com a psicologia humana, os brâmanes se associarim ao Nous, ou ao Intelecto Ativo. Poderíamos também dizer que eles estão associados ao espírito e à cabeça. Já os Ksatryias se vincularim à personalidade, ao peito (tórax), à alma irascível. No terreno esotérico, estas varnas estão ligadas a formas diferentes de Iniciação. Os brâmanes são gnósticos, trilham vias do tipo jñana ["conhecimento"], de pura contemplação e metafísica, compatíveis com suas tendências sátvicas. Já os Ksatryias têm apelos emotivos e psíquicos que os tornam mais adequados a caminhos devocionais, à ligação com ''divindades pessoais''.
Guénon ia além. ao sustentar que a iniciação dos ksatryias era uma dos Mistério Menores, ligados à salvação da personalidade, ao retorno ao estado original do homem como centro deste mundo [estado adâmico], e aos conhecimentos cosmológicos. Já a iniciação brâmane seria a dos Mistérios Maiores, que levavam à Identificação Suprema [ou realização espiritual], de natureza principalmente metafísica.
Dito isto, ele ensinava que em toda ''civilização normal'' (ou seja, em toda sociedade organizada segundo a Tradição), os brâmanes exerceriam a autoridade sobre os Ksatryias. Estes útimos detinham todo o poder na ordem mundana, porém se curvariam aos sacerdotes e mestres (brâmanes) que detinham o ensinamento tradicional de ordem mais elevada. Como o Rei nada mais era que um ksatryia, estaria sempre limitado pelo sacerdócio.
Evola pensava diferente. Ele fazia notar a existência de um estado anterior à divisão de varnas, o estado do próprio Realizado. Em tal estado, os poderes de brâmanes e Ksatryias estariam sintetizados. A função social que corresponderia a esse estado seria a do Rei-Sacerdote, o Pontifex supremo. O Ksatryia teria características que lhe permitiriam conquistar o poder sacerdotal e atingir esse elevado patamar espiritual, sem mediação brâmane. Tal via régia colocaria o Monarca em uma posição superior à do sacerdote.
A resposta guenoniana ao argumento do Barão é de que não vivemos mais na Era de Ouro, em que alguns homens já nasciam Iniciados. No momento atual de degeneração, a Era de Trevas, a posição de Evola não faria sentido.
No que diz respeito à Cristandade Latina, o mesmo tema da discordância de ambos exemplifica-se por meio das pendengas entre o Papado e o Império -- ou, na terminologia italiana, entre guelfos e gibelinos. Mas a questão também toma forma no tema do fortalecimento das Monarquias, no alvorecer da Modernidade, com a Realeza submetendo o clero e insistindo em teorias como a do Direito Divino.
A discordância neste ponto está longe de ser banal, e traz implicações para a análise da decadência espiritual e civilizacional. A tese principal de Guénon era a da Rebelião dos Ksatryias (contra os brâmanes), que causaria uma ruptura no reflexo pessoal e social do Mancatropo. As considerações de Evola sobre o ''Retrocesso das Castas" são um tanto diferentes, bem como os meios para se evitar ou 'retificar' a situação.
Em outra postagem vou falar de uma perspectiva cristã-ortodoxa sobre esse 'problema'.
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