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"Viva la libertad, carajo" - Milei, a esquerda, a direita e outras eras

Uma versão deste texto foi originalmente publicada na revista Valete, número 13, em março de 2024



Assisti, inteiro, mais de uma vez, o discurso de Javier Milei no Fórum Econômico Mundial, em Davos. Aquele que termina com “viva la libertad, carajo!”.  Por alguma razão bizarra, nos últimos meses, não tenho, de fato, pensado em outra coisa. São as palavras do argentino, com seus cacoetes, seu timbre peculiar e seu sotaque característico, que têm ecoado em meus sonhos - decorei-as todas, naturalmente. Penso naquele discurso enquanto tomo banho. Quando tomo o café da manhã. Quando estou com a morena. “Viva la libertad, carajo!”. 


É, per supuesto, um quadro grave e preocupante. Para exorcizar Javier do íntimo do meu ser, ensaiei escrever um “textão”, dissecando cada silogismo do homem. Lá pela décima página do tratado, julguei por bem deletar o ensaio (antes, fiz questão de imprimi-lo só para poder, dramaticamente, amassar as folhas e lançá-las ao lixo - igual nos filmes). Ninguém leria aquilo. E, afinal, escrever para que ninguém leia é só um jeito mais esnobe de falar sozinho, igual maluco. O problema é que continuei assombrado pelo porteño. Para me distrair, coloquei Libertango do Astor Piazzolla na vitrola - é claro que o nome mesmo do álbum não me ajudou (“viva la libert”)…. Mas fiquei ouvindo, melancólico, e pensando, igual velho, em como a “direita”, essa entidade tão amorfa, já foi diferente. 


Ora, em outras eras, a direita defendia a Lei e a Ordem - o policiamento, em sentido amplo. Os tempos são outros: hoje, boa parte dela aplaude um discurso anarquista contra o Estado e o globalismo - proferido, aliás, por um globalista de quatro-costados: com carreira no banco HSBC, consta ainda em seu curriculum ser membro do B20, consultor de G20, e do próprio Fórum Econômico Mundial. E mais: trata-se de um anarquista que calha de ser Chefe de Estado da segunda maior economia da América do Sul. Na obra “Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, o personagem Ivan Karamázov era um inesquecível e disparatado teólogo ateu. Já a América do Sul, na vanguarda do absurdo e do realismo mágico, brinda o mundo com a figura do Presidente anarquista. É fantástico, e digo quase sem ironia. Nossa vantagem absoluta, nos termos do socialista escocês Adam Smith, reside não só na produção e exportação de cocaína, mas também na cotidianização das contradições, na manufatura de tipos exóticos, doidivanas tresloucados e extravagantes de um colorido que seria impensável em qualquer outro continente (chamei o economista escocês de “socialista” no sentido peculiar em que Milei usa o termo: Smith, afinal, escreveu várias críticas a empresários e defendia a regulação do Estado).


E chamei-lhe anarquista porque Javier afirma, ipsis litteris, em seu discurso que me persegue, que “não existem erros do mercado” (seria um “oxímoro”); que é um erro regular monopólios; e que é equivocada toda “regulamentação”, pois “o Estado é o próprio problema”. 


Viva la libertad, carajo


Foi, afinal, em nome não de qualquer “liberalismo”, não senhor, mas em nome do “libertarismo” que Milei discursou. Bueno, os próprios libertários já foram… diferentes. Em 1967, ano da morte de outro argentino famoso, em editorial, ninguém menos que Murray Rothbard escreveu um obituário de Che Guevara, que ainda hoje, veja só, se encontra no site do Mises Institute. Naquele texto, Rothbard, o homem que popularizou o uso da gravata-borboleta e também sobretudo o libertarianism, já começa, de cara, dizendo, “Che está morto e todos nós [libertários] lamentamos por ele”. Ele esclarece, veja bem, que a razão por trás dos lamentos de tanta gente nada tinha a ver com o comunismo de Che. Longe disso, sua luta contra a intervenção estatal dos EUA no sul do continente (promovendo golpes de Estado e outras coisas desagradáveis), é que teria feito de Che uma “figura heroica” e uma “lenda” (palavras do Rothbard); afinal, acrescenta o libertário:


A CIA pode reivindicar o corpo de Che, mas nunca será capaz de acorrentar seu espírito”.



*** 


É preciso dar um desconto ao jovem Rothbard: em cenário que remete não tanto ao realismo fantástico latino-americano, mas antes aos pesadelos de Kafka, Cuba é um país-ilha em que pescadores são proibidos de terem embarcações, tendo de trabalhar tão somente com suas redes e arpões. O absurdo de um mundo em que a liberdade do mar é negada aos pescadores ecoa pelos séculos. Ali, a canção de Dorival Caymmi não se materializa e o pescador sempre sabe quando volta - mas também não sai. Em todo caso, quando a gente escreve um ensaio, a gente pode se dar a liberdade (carajo!) de recortar um aspecto específico que queremos destacar, seja da vida de um homem ou de uma sociedade - até uma civilização inteira. 


Mesmo à Cuba pós-revolução é preciso dar um desconto: Ricardo Amorim, no Manhattan Connection (quem lembra?) foi ridicularizado por dizer que “em Cuba só tem três coisas que funcionam: é a segurança, é a educação e exatamente a saúde”. Errado Amorim não estava: nem só de pão (e saúde, educação etc) vive o homem. Mas, vá lá, para sermos justos, o Estado cubano é um dos únicos que conseguiu a proeza de expulsar a Máfia de seu território (o único outro Estado a fazê-lo foi a Itália de Mussolini, mas deixa pra lá). E eles têm, de fato - não faz mal admitir - méritos na educação e saúde e coisa e tal. Conseguem reprimir bem o narcotráfico (com pena de morte e paredón, inclusive). E sabem preservar o patriotismo, seu patrimônio histórico e monumentos: até hoje não me consta que nenhum cubano tenha se atrevido a pichar a Necrópole de Cristóvão Colombo (a maior da América Latina), gloriosamente localizada em Havana. É, de fato, a esquerda já foi bem diferente - e digo “foi” assim, no passado, porque, todos sabemos, Havana, com seus carros antigos, seus Mercurys, Dodges e Cadillacs, hoje está mesmo localizada em algum lugar dos anos 1950: não é uma u-topia, mas um tipo triste de cronotopia: antigamente também é um lugar. Mas eu falava dos libertários - aqueles de antigamente.



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E, antigamente (lá vamos nós…), os libertários eram também capazes de ver o absurdo que consiste em grupos sionistas socialistas invadirem e tomarem terras e aterrorizaram uma população, com o apoio do Estado - esta era a posição também, em priscas eras, do Alvaro Velloso de Carvalho e outros, no jornal “O Indivíduo” (quem lembra?), hoje extinto. Boa parte da economia do país que Milei visitou recentemente, se fundamenta na política socialista dos kibbutzim, uma instituição dhttps://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/10/11/o-que-e-um-kibutz-entenda-o-funcionamento-da-estrutura-rural-de-israel.ghtmle agricultura coletivista e assentamentos comunitários, que Kelsey Ables, no Estadão, em outubro de 2023 (“O que é um kibbutz?”), elogia profusamente. Você há de convir que é raro o Estadão elogiar invasões e o socialismo, exceto talvez quando se trata de Israel. Mas este é um assunto para outra ocasião - ademais, não convém entrar em assuntos demasiado polêmicos, coisa que, bem se nota, tenho tentado evitar ao longo deste texto inteiro.



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O fato é que, em outros tempos, libertários dos EUA denunciavam a política externa desastrosa de Washington e o seu “warfare state”, sobretudo no Oriente Médio - esse posicionamento libertário consistentemente “anti-guerra”, para sermos justos, tem sido mantido, corajosamente, por figuras como Ron Paul, por exemplo - mas ele não é exatamente um homem de nossa época e, por isso, não conta. Já Javier é um animal de tipo bem diverso.


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Naqueles tempos de antigamente, denunciando um sistema que é mais “proletarismo” do que capitalismo, um gaúcho metodista influenciado pela Doutrina Social da Igreja Católica, de sobrenome Brizola, proclamava que “a propriedade privada é uma coisa tão boa, tão boa que a queremos para todos os brasileiros”. Outros tempos, outra esquerda. Mais antigamente ainda, um inglês bonachão conservador chamado G. K. Chesterton iria escrever, em “What's Wrong With the World”, inspirado pelos cachinhos sujos de uma menina ruiva pobre, em diatribe contra a usura e a especulação que, “porque deveria haver uma redistribuição de propriedade, haverá uma revolução”. Outros tempos.


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Ora, nas sociedades complexas, existe a intervenção do Estado que promove e incentiva a produção e o empreendedorismo - e existe a intervenção estatal que oprime e gera distorções. Existe a opressão do Estado e a opressão de um mercado desregulado; a opressão tributária e a opressão dos juros bancários. Como disse uma vez Joel Pinheiro, em afirmação bela, moral e verdadeira, que, contudo, foi objeto de muitos memes e zoação, “o mundo não é linear”. De fato não é.


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A verdade, como diz, em artigo recente, o Josias Teófilo (mais uma vez certeiro), é que, em boa parte do Brasil, e, acrescento, da América do Sul, o Estado nunca esteve realmente presente. Nas favelas, bem longe de qualquer glamourização de intelectuais, falta Estado (e falta estudo): como diz Josias, em sua provocação, são lugares, assim como o sertão na época do cangaço de Lampião, que precisam ser “civilizados” e “colonizados” - no sentido de lhes levar “saneamento, pavimentação, arborização, policiamento”. Ora, essas são missões, que, assim como emitir e cunhar moeda, cabem, desde os tempos dos antigos incas, maias, egípcios e romanos, a César. Ou a qualquer autoridade estatal que colete tributos - autoridade esta que um carpinteiro que andava pela Galiléia também reconheceu, na ocasião em que segurava, em Sua mão, uma moeda marcada, como era, com a efígie do Imperador.



Eu receio que Javier (lo siento), esteja errado - e Cristo, certo. “Quod Dei Deo, quod Caesaris Caesari”, carajo! Assim como existe (perdão!) um lumpenploretariado, existe também uma lumpen-burguesia. E cabe ao Estado, fiscalizado pelo povo, instaurar o Nómos, o Império da Lei. Para todos.


Javier Milei, para sermos justos, tem alguma razão quando menciona, em seu discurso de que não esqueço, o aparelhamento do Estado pelas “feministas” - que, entendo, é a forma metonímica dele se referir a uma série de ativismos “pós-modernos”, na falta de palavra melhorzinha. O problema é que, longe de se tratar, como pensa ele, de “marxismo”, trata-se, isso sim, de um bicho bem diverso: eu chamaria de “identitarismo”. Aqui, não convém deixar escapar, pelo ralo, o bebê junto com a água do banho - além de animal político (zoon politikon, nos termos de Aristóteles), o ser humano é um ser necessariamente dotado de identidade. O problema do identitarismo pós-moderno é que ele insulariza as identidades; transforma-as em ilhas isoladas desalinhadas e incompatíveis com outras identificações, como tenho escrito. Mas isso é papo para outro dia. E receio que acabou o espaço. A única coisa a fazer, agora, é tocar um tango argentino - e tentar esquecer Javier.


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